quinta-feira, 23 de novembro de 2006

UM ARTIGO DE D. ANTÓNIO MARCELINO

ERROS QUE A NATUREZA
E O TEMPO NÃO PERDOAM
Parece claro que a melhor prática democrática, por si mesma, não cria valores novos, nem é critério definitivo de verdade. A democracia é uma maneira prática, com limitações, mas ainda assim a mais consensual, de dirimir questões e não empatar decisões, quer através da vontade directa expressa pelos cidadãos, quer por mediadores legalmente escolhidos, que se pressupõe desejarem servir a nação acima dos interesses partidários. Porém, a democracia não torna bom nem justo o que o não o é. Daí poder dizer-se, com fundamento, que nem tudo o que é legal é moral. Esta tensão sempre existiu entre o legal, ou seja o que a lei determina ou permite, e o moral e o ético, entendidos como o que corresponde à rectidão e à coerência dos comportamentos responsáveis confrontados com os princípios morais e éticos. Agora, porém, agudizou-se, porque não falta quem se arvore em moralista de uma moral de situação, que parece não ter outro fundamento além do que a cada um convém ou interessa em cada momento e circunstância. Não se aceitando valores universais, nem verdades objectivas, fica o campo a descoberto e à mercê dos semeadores do joio e da cizânia, e dos doutrinadores oportunistas, que o impedem de dar fruto e, a seu tempo, o transformam numa selva inabitável. Isto exige aos legisladores ordinários e aos cidadãos em geral quando são chamados a pronunciar-se sobre matérias que tocam situações de especial melindre e importância pública, que honestamente ponderem as razões dos seus actos e os resultados que ao longe se tornarão inevitáveis, ainda que ao perto parecem aceitáveis. O respeito que cada um nos merece num regime democrático pela sua opinião, livremente expressa, não nos permite nem nos obriga a dizer que tem total razão e que o diz é sempre certo. Milhões de opiniões não fazem uma verdade, embora não sejam precisas tantas para fazer uma lei. Somos todos livres de ter opiniões. Estas valem tanto mais, quanto mais respeitam e se inspiram em valores morais indispensáveis. É ainda mais assim quando se pretende viver em sociedade com paz, justiça e tolerância activa, frutos de um esforço diário para aceitar verdades e princípios, com os incómodos que o viver em comum sempre comporta. Legislar por força de emoções ou de promessas eleitorais é entregar-se ao efémero das soluções inconsistentes, tão variáveis como o tempo, ludibriando assim os interesses da comunidade no seu conjunto, para ceder à preocupação de agradar a uns e minimizar a falta pública de outros. Fica deste modo manifesta a falta de horizontes sociais e políticos e a incapacidade de antever as consequências dos actos praticados. Assim se entende o apelo dos bispos portugueses, fieis à sua missão socialmente humanizante, para que os eleitores não deixem de reflectir, serenamente, sobre o dom da vida e a responsabilidade do mesmo, na perspectiva de um referendo sobre o direito de destruir seres humano em gestação, para já só em algumas circunstâncias a acrescentar a outras já legisladas, sem que isso constitua crime. Trata-se de seres humanos indefesos no seio da mãe que os gerou, com o contributo normal de um pai que vergonhosamente se esconde e a quem de certo interessa uma tal lei permissiva. É este, concretamente, um acto moralmente inqualificável, que um moralismo fácil pretende camuflar chamando-lhe eufemisticamente “interrupção voluntária da gravidez”. Estamos perante um acto civilizacional de consequências imprevisíveis. Os que foram à frente e que servem de modelo cego aos nossos políticos, modelo que estes querem impor ao país, empenhando-se de modo tão pouco normal dadas as nossas necessidades e urgências, já começaram a ver que só a vida garante a vida, e que o respeito pelos outros não se traduz em canonizar os erros, mas em ajudar a superá-los.

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