terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Natal da minha meninice

A Virgem e o Menino, de Hans Memhng, Museu Nacional de Arte Antiga

Na paz da minha tebaida, usufruindo do aconchego dos meus familiares e da companhia sedutora dos livros que me trazem recordações de tantos anos, vieram até à minha memória vivências de Natais doutros tempos. Dos tempos em que o essencial não eram apenas as lembranças compradas em lojas de modas, que o Menino Jesus de então nada tinha a ver com o símbolo comercial do anafado Pai Natal dos nossos dias.
Lembro-me, era eu um menino que acreditava mesmo nas prendas do Menino Deus, de ver minha mãe regressar da loja da Tia Joana Rita, esposa do mestre José Lázaro, com uns embrulhos que tentava esconder. Por mais que lhe pedisse que nos mostrasse o que trazia, ripostava com maus modos, mas a sorrir: o Menino Jesus não gosta nada de meninos teimosos. E lá ia esconder as simples guloseimas que na madrugada da Noite de Consoada estariam bem distribuídas nos sapatos que eu e meu irmão púnhamos num recanto da lareira da cozinha principal.
Nunca me zanguei quando descobri que afinal as prendas do Menino Jesus chegavam até mim através dos meus pais. E quando ouço alguns "sábios" que há por aí com protestos sem nexo contra o facto de se enganarem as crianças com as prendas que o Menino Jesus distribui no dia de ceia (como por aqui se diz), rio-me da ignorância dessa gente que fica, no entanto, toda contente e até acha bem que seja o Pai Natal a substituir o Deus Menino da minha infância.
Diz a psicologia que há idades para tudo: para os sonhos, para as estórias de encantar, para os contos mágicos, para o fantástico, para o faz-de-conta e para tantas outras lendas e tradições que fazem voar a imaginação por espaços irreais, tornados autênticos para muitos, cruzando-se com a vida dos homens que nem sempre podem ou sabem abrir-se aos mistérios que trazem no coração.
Não fiquem, pois, perturbados esses "sábios" que são incapazes de voar para o alto, quais águias que abarcam horizontes de belezas ímpares, para vislumbrarem os mundos de sonhos que nunca se esquecem. Quando a minha mãe me disse que o Menino Jesus apenas dava saúde a meu pai, que labutava nas águas do mar, na pesca do bacalhau, onde se iniciara em menino, com 14 anos, não fiquei nada zangado. E até me recordo que ri a bom rir e que a beijei ternamente.

Fernando Martins

2 comentários:

  1. Pelo Natal

    Recordo com saudade aqueles Natais
    Que celebravam o nascimento de um petiz
    Um momento tão marcante e tão feliz
    Passado numa cabana pobre de animais

    Eram pobres as prenditas que me dava
    O menino Jesus, nos Natais da meninice
    Um doce e algo útil. Mesmo que não pedisse
    Ele sabia sempre do que eu mais precisava

    E que podia eu esperar receber mais
    De um menino muito mais pobre do que eu
    De um menino que eu sabia que nasceu
    Tão pobre numa cabana de animais

    Era um tempo muito belo mas modesto
    As roupas partilhadas com os manos
    Os brinquedos, simples, duravam anos
    A imaginação e o engenho faziam o resto

    Hoje é diferente e faz-me certa confusão
    Que o Natal que era outrora de um menino
    Seja hoje de um velho abastado e fino
    Que publicita as suas prendas na televisão

    O Pai-Natal impôs-se no nosso imaginário...
    Um menino pobre numa cabana de animais
    Não encaixa bem nos propósitos comerciais
    Como explicaria qualquer bom publicitário.

    Recordo com saudade aqueles Natais...

    (22 de Dezembro de 2005)

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  2. Lembranças. Como o nosso ideário faz vir ao decima as mais antigas, nesta altura do ano!
    A loja da Tí Joana Rita, onde ficava a paragem da camioneta que ia e vinha de Aveiro. Em frente ficava a farmácia do Sr. Morais!
    As casas estão lá. Do resto só a recordação

    Ângelo Ribau

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