quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Natal de 1962

EU DORMIA PROFUNDAMENTE
E... SORRIA!
Poucos dias antes do natal de 1962 havia grande azáfama na nossa Companhia. Tínhamos recebido informações de que o IN iria aproveitar a época natalícia para meter grande quantidade de armas e munições no território angolano. A passagem seria pela já nossa conhecida picada do Quelo.
Ficámos admirados com tanta e concisa informação! Seria mesmo verdade? Ou isto seria mesmo contra-informação? Pelo sim pelo não ficou resolvido pelas altas esferas da Companhia que até ao dia 23 haveria sempre dois pelotões em movimento, fazendo emboscadas, patrulhando as picadas prováveis para a passagem do IN.
No dia 23 houve que ir ao abastecimento a São Salvador para a consoada! Que diabo de abastecimento seria esse? Batatas haveria, mas… e o bacalhau? E as couves?
Para mim uma boa feijoada com dobradinha brasileira era o suficiente! Para quê sonhar tão alto? Não querias mais nada: - bacalhau com couves! Estamos em Africa, dizia-me o Costa Pereira em ar de gozo.
O nosso pelotão estava de serviço ao acampamento e teve de ir à água e à lenha, pois dois estavam em operações e o outro tinha ido ao abastecimento.
Estava curioso por saber o que o nosso vagomestre nos iria trazer para a noite de consoada. Traria com certeza o que o “Barriga de Guinguba” tivesse trazido de Luanda. Abastecimento local não havia.
O pelotão chegou era já um pouco tarde e descarregou no armazém. Os pelotões operacionais também haviam regressado. Pessoal cansado. O que vale é que amanhã é dia de consoada e não haverá operações, pensava-se! Caminhava-se de vagar, ao deus-dará, pela parada. Um ou outro homem chegava-se à cantina para se dessedentar com uma 7UP ou uma Cuca fresca. Que pensariam aquelas almas? No dia seguinte era dia de consoada. Pensavam no mesmo que eu, com certeza.
Ao menos valia a pena. O que sucedeu em 1961 não se repetiu!
No dia seguinte, depois do almoço, o Zé Cozinheiro começou a tratar da ceia da consoada. O Furriel Cura, o vagomestre, convidou-nos a ir ver como corriam os serviços pela cozinha. Fomos. Era um modo de passar o tempo, de afastar as ideias que com a velocidade da luz teimavam em lembrar-nos o que se passava lá longe!
Ao chegar à cozinha notei um amontoado de grades de madeira. Ó Cura, o que é aquilo?
Não sei, vamos ver. E pegou num martelo de orelhas para abris uma grade. Olhei e vi com espanto a inscrição na madeira: “Cod-Fish”. Meu Deus, disse eu. Vamos ter bacalhau para a consoada! O Cura riu com satisfação e disse, vamos ver!
Desmantelou a grade de madeira que protegia outra embalagem hermética, feita de folha de zinco prateada, que dizia em inglês “Embalado na Africa do Sul” Não resisti e puxei a pega que servia para abrir a lata, deparando com seis bacalhaus do tamanho crescido lá dentro. Arranquei uma fêvera, meti-a à boca e, ao tomar-lhe o sabor exclamei:
- Malta, é mesmo bacalhau!
Alguns riram com a minha admiração. Só fiquei com pena de não ser bacalhau português, seco e embalado na minha terra. A embalagem seria de ráfia, mas o sabor seria melhor do que este.
Enfim, coisas que se pensam, para não pensar noutras coisas!
Arrumaram-se as camas de uma caserna e montaram-se mesas corridas. Nessa noite toda a companhia cearia junta, num sinal de união.
Cura, como conseguiste arranjar o bacalhau? Olha, não contava, mas às vezes “os tropa do ar condicionado”, lá fazem destas coisas, e ainda mais, mandaram couves. Estão todas murchas. Mas o Zé Cozinheiro há-de arranjar processo de elas ficarem apetitosas.
O dia ia passando, o sol ia-se escondendo lá para os lados de São Salvador do Congo!
Que será feito hoje dos meus dois irmãos que estão em Angola?
Um, Policia Militar, estará em Luanda, o outro está, salvo erro, em Tomboco, no coração dos Dembos.
Ambos solteiros, estarão a pensar na nossa família?
O que está em Tomboco estará como eu, tentando, – só tentando – pensar no que nos rodeia.
O que está em Luanda, em serviço ou fora dele, ao ver as montras e a alegria festiva dos passantes, deve ter muitos apertos do coração!
O tempo estava quente, a azáfama no acampamento era muita. O que me admirava eram os passeios isolados de muita gente pela parada. Não se conversava. Mãos nos bolsos, embora a temperatura que se fazia sentir ser elevada (estava-mos no Verão), olhando para o além, tentando descortinar o que se passaria ao longe.
Anoitecera. A noite estava escura. Fui fazer uma ronda, conversando com este e aquele, a minha pergunta era sempre a mesma: - Então pá, tudo bem?
E a resposta era sempre a mesma: Um encolher de ombros, e… tudo bem!
Também nas sentinelas se notava aquela ausência do espírito. O corpo estava ali, mas o espírito andava muito por longe. Era perigoso este estado de espírito para quem estava de serviço. Disse aos sentinelas que não queria ver ninguém sentado. De pé e a passear de um lado para o outro. Quando o pessoal que os haveria de render ceasse, viria rendê-los e eles iriam cear.
E assim se ia passando a noite de consoada, à espera da ceia.
Enfim, chegou a hora. O pessoal sentou-se. Ia começar a ceia. Tinha havido ordem de o gerador trabalhar mais duas horas, até à uma da madrugada!
À ordem de cear quase todas as bocas se calaram, executando outra função mais útil: comer. O bacalhau era bacalhau também no sabor, as couves embora com aspecto de verdes, tinham um sabor a nada!
Finda a refeição, foram rendidos os homens que estavam de serviço, e vieram eles cear.
Tinha terminado a ceia de consoada. Antes de nos sentarmos à mesa, iam-se fazendo os preparativos e pensando esperançados na ceia de Natal. Agora que esta terminou, sentíamos o estômago cheio, mas faltava qualquer coisa na cabeça!
Fui dar uma volta, fazer mais uma ronda, já que não havia mais nada a fazer. Era meia-noite. Tudo estava bem.
Ao passar no último posto, dois sentinelas conversavam e um dizia para o outro: A esta hora, na minha aldeia, repenica o sino da igreja a chamar os fiéis para a missa do galo.
Mais uma vez a minha mente voou à velocidade da luz, para longe!
Repreendi-os, não pela sua conversa, que me chocou pela lembrança que me trouxe, (não me atreveria a tanto), mas por estarem os dois fora dos seus postos de vigia…
Cheguei-me à nossa caserna, passei palavra ao sargento que me ia render, para me chamarem quando chegasse a minha hora de serviço, e estendi-me na cama. Adormeci. Só acordei quando já era dia. Levantei-me atrapalhado: - Que diabo, e a minha ronda?
Fui então informado pelo meu colega, que, quando ia para me acordar, eu dormia profundamente… e sorria!
- Não fui capaz de te acordar, e fiz a ronda em teu lugar, disse-me o Miranda!

Ângelo Ribau Teixeira

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