terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Linguajar dos gafanhões de antigamente

Estou a ver os homens baixos e magros de camiseta e de ceroulas compridas, de flanela, estas com atilhos amarrados nas canelas, barba por fazer (só se fazia aos sábados, no barbeiro), boné ou chapéu na cabeça, mãos gretadas pelo trabalho duro, descalços, rosto envelhecido, queimado pelo vento e pelo sol impiedosos, força de vontade férrea, poupados, com gosto pelo trabalho e pela solidariedade tantas vezes manifestada, religiosos sem beatices, amigos dos seus amigos. 
As mulheres baixas e de pernas grossas, sem cintura e sem pescoço, olhos ingénuos, de chapéu de palha na cabeça por cima de um lenço que amarrava sobre o chapéu, roupas escuras, excepto ao domingo, em que se abusava da cor garrida, sobretudo as das secas do bacalhau, pernas com canudos (meias sem pés) enfiados para o sol não as queimar, que era fino tê-las brancas, descalças, mãos gastas pelo trabalhos, tranças na cabeça, porque permanentes eram para as da cidade, religiosas sem exageros, amantes do trabalho e poupadas, solidárias e amigas das suas amigas.
Mas a maneira de falar, um tanto ou quanto cantada, com alguma malícia pelo meio, entre risadas contagiantes, é que me encantava.
Levemos a nossa memória até lá atrás e ouçamos a Ti Maria e o Ti Atóino. Vinha ela desaustinada (sem tino) porque a canalha lhe estragara as batatas ali ao pé da escola da Tia Zefa. Estava arrenegada (zangada).
O ti Atóino vinha da borda, onde andara ao moliço para o aido. Antes da maré, porém, deitara-se a descansar, com o corpo moído, na proa da bateira que ia à rola (à deriva). Sem saber como, e com uma nassa, apanhou uns peixitos para a ceia (o jantar de hoje). Já não era mau. Naquele dia não comeriam caldo de feijão com toucinho, com um bocado de boroa. Sempre seria melhor.
— Então queras (queres) ver, Atóino, o que a canalha (os garotos) da escola fez? Andou por riba (cima) das batatas a achar (à procura de) a bola e ‘stragaram-me tudo. Tamém (também) andaram à carreira (a correr velozmente) atrás uns dos oitros (outros) a amandar (mandar, atirar) pedras e a acaçar ( caçar, ao agarra). Se andassem com relego (com moderação), ainda vá que não vá. Mas não. Andavam a toda a brida ( à desfilada, a toda a força), como que a atiçar (meter-se) comigo. E se calhar a professora estava abuzacada (refastelada) na sala. Isto está mal, não achas?
— Pois é verdade, Ti Maria. Não são coisas que se façam. Anda um home (homem) a gastar dinheiro em batatas e buano (guano), muitas vezes sem se astrever ( atrever, poder) e estes mariolas (marotos), num’stante (instante) deixam tudo ‘struído. Era só a gente atirar-lhe com um balde de auga (água), para eles aprenderem. São a mode (como que) tolinhos e alonsas (parvos). Mariolas! (marotos!). Vossemecê já falou com a professora? Se ainda não, vá lá e diga-lhe que ó despois (depois) não se arresponsabiliza (responsabiliza). São uns desalservados (cabeças no ar), uns desintoados (desentoados, disparatados).
— Tens razão, Atóino. Vou lá num‘stante (instante), antes que seja tarde. Amanhê (amanhã) tamém (também) falo com os pais. Sempre são homes (homens) e melheres (mulheres) pra (para) darem uns estrincões (apertões com os dedos em zonas sensíveis) aos miúdos, pra (para) eles aprenderem. Opois (depois) que não se queixem.

Fernando Martins
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NOTA: Entre parêntesis, as palavras ou expressões correctas. Excerto de palestra sobre coisas de antigamente.



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