domingo, 22 de abril de 2012

TECENDO A VIDA UMAS COISITAS - 287

PITADAS DE SAL – 17 




APONTAMENTOS PARA UM TRABALHO 
SOBRE A PAISAGEM DE AVEIRO 

Caríssima/o: 

Nas minhas deambulações pelos trilhos  e para as marinhas, encontrei este apontamento que muito apreciei: 

«[...] A humanização da paisagem de Aveiro sugere qualquer coisa de actividade lúdica, de esforço manobrado pela mão da inocência criadora da infância que se compraz em regalar os olhos com o produto da sua energia. O pragmatismo, aqui, surge corroborado por uma moldura doirada de beleza e aconchegado pelo calor de uma visão que amacia o sensório. 
O cagaréu foi-se à água informe e desordenada e domesticou-a dentro de rectângulos de uma esquadria rigorosa, realizando uma paisagem geométrica com murinhos pueris de Iodo que parecem riscados a régua e esquadro. 
É a humanização geográfica mais epidérmica que conheço e, consequentemente, a mais frágil e vulnerável. 
Em cada ano estes marnotos-geómetros têm de refazer tudo desde o princípio: a água tem de ser novamente domada nos seus ímpetos arrasantes e contida no viveiro para ser, depois, usada por conta-gotas e, com ela, formar camadinhas de espelho que estende pela planície fora... Ali se armazena a água e começa a condensar-se para a via sacra que tem de percorrer: algibé, caldeiras, sobre-cabeceiras, talhas, cabeceiras, meios de cima... 
É um penoso calvário em que cada dolorosa etapa foi baptizada e tem o seu chamadoiro: o marnoto sua a fralda da camisa a estranger os meios à força de ugalho, a almanjarrar a lama que o inverno depositou, a bimbar os travessões, a apancar as próprias pegadas, a curar o leito dos tabuleiros, à força de círcio... É um nunca acabar de fadiga até à festiva botadela do sal... Mas por fim, quando a marinha começa a produzir, quando o sal cintila e o codejo crepita, estendem-se os olhos e é um nunca acabar de espelhos que faíscam lume e endurecem numa cristalização almofadada de brancura. E, em dado momento, montes de neve alvíssima começam a crescer, a recortar-se sobre o azul e a repercutir-se na água lisa, como seda, a sua imagem imaculada. 
Só a fita estreita do malhadal separa os dois cones unidos pela base – o que, concreto, se eleva para o céu e o que, reflectido, se mergulha na água que o recebe depois de o ter dado. 
Um não sei quê de estranho se descobre nesta paisagem de sonho que corusca, emitindo fogachos doirados para uma atmosfera clara e inundada de luz. [...]»[Dr. Frederico de Moura, in “Aveiro e o seu Distrito”, nº 5, Junho1968] 

Manuel

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