terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Quanto custa um poema?



Luís de Camões
O preço de um poema

«É triste constatar que um poeta consegue fazer mais tostões escrevendo ou falando da sua arte, do que a praticá-la.» O lamento tem décadas e vem assinado por W.H. Auden, mas serve completamente para hoje. Se aceitássemos sem mais que o valor intrínseco de um bem é aquele determinado pelo seu potencial económico, a poesia já há muito teria desaparecido, Mas na situação atual, onde as questões da produção artística e cultural são mais ou menos remetidas para um limbo, não se pode garantir que a extinção não seja uma efetiva ameaça. Sabemos que uma carcaça anda à volta dos vinte cêntimos, que um litro de leite anda à roda dos sessenta e por aí fora. São números que muito justamente nos preocupam, enquanto indicadores das linhas de sobrevivência. Mas quanto custa um poema?


O exemplo que avanço não é o de um poeta obscuro: o seu trabalho tem uma extensão assinalável e um enorme reconhecimento. Está, além disso, traduzido em várias linguas, comparece em manuais escolares e vai sendo objeto de um crescente estudo em artigos e teses, tanto em Portugal, como no Brasil. Pois bem, o seu primeiro livro surgiu em edição de autor (quer dizer, inteiramente do seu bolso). O que obteve dos exemplares vendidos nem chegou para pagar metade das despesas de tipografia Editou, depois, vários títulos numa importante chancela de poesia, mas que, por razões de sustentabilidade, propõe o seguinte acordo aos criadores: não pagam para editar, mas também não recebem direitos em dinheiro (ficam com trinta exemplares da sua obra, e é tudo). O primeiro salário que este autor de primeiro plano recebeu foi o de um livro editado na Imprensa Nacional Casa da Moeda: quinze contos, em dinheiro da altura Não pensem que se tratou de uma fortuna, pois um volume reúne a produção literária de um ou dois anos de trabalho. Recentemente viu a sua obra reunida, e um coro de vozes destacou a sua importância na paisagem da literatura contemporânea Recebeu de direitos €500 no primeiro ano, e €1700 no segundo. E estamos a falar de uma safra de décadas. Quanto custa mesmo um poema?

Quanto é que nos custou o nosso poema nacional, "Os Lusíadas", e quanta pobreza custou a Camões? Quanto custou a obra de Álvaro de Campos, que é tão extraordinária como o claustro do mosteiro dos Jerónimos onde jaz o seu criador? Quanto nos custou "Um adeus português" do Alexandre O'Neill ou 'Natureza morta com louva-a-deus", de Fiama Hasse Pais Brandão? Que preço coletivamente nós pagamos por "A Magnólia" de Luiza Neto Jorge ou por "O Inominável" de Eugénio de Andrade? Sentimo-nos em dívida por Armando Silva Carvalho ter escrito no nosso tempo e a nosso lado um conjunto tão extraordinário de poemas como o do seu "De Amore"? É claro que podemos remeter a poesia para uma escolha individual, de que mais ninguém pode ser "culpado". Vão nesse sentido as palavras de e.e.cummings: «A poesia e a arte em geral foí, é e sempre será, na forma mais pura e estrita, um problema do indivíduo.» Creio que todos os poetas se reconhecem existencialmente nessa formulação, pois a poesia é, de facto, uma questão que têm consigo. Seria, contudo, muito estranho desconhecer a função antropológica e social da poesia. Das muitas definições de poesia, há duas a que retorno sempre. A primeira é de Paul Celan: «A poesia é qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração.» E a outra, de Jean-Yves Masson: «A poesia é uma água à qual podemos pedir a sede.» Gosto destas definições por acreditar que o poema ilumina e adensa o caminho da nossa própria humanidade. Mas os poetas precisam que a sociedade pergunte se tem a pagar alguma coisa.

José Tolentino Mendonça
In Expresso, 2.2.2013

Fonte: SNPC

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