terça-feira, 15 de outubro de 2013

O Marnoto Gafanhão — 12

Um texto inédito de Ângelo Ribau Teixeira


E a estudantada lá desapareceu 
de vista para os lados de Aveiro


E a estudantada lá desapareceu de vista para os lados de Aveiro. Teriam frio na cara mas não no resto do corpo bem agasalhado e com as mãos enluvadas. E o Toino ia trabalhando e pensando: “E eu aqui…”
Enfim, terminou a apanha do moliço. Agora era vir com o carro dos bois e transporta-lo para as terras. Seria no dia seguinte que começariam com esse serviço. Assim foi.
— Como os bois não andam tão depressa como as bicicletas, amanhã temos de levantar mais cedo, para ao nascer do sol estarmos lá! — avisa o pai do Toino.
Não havia safa. Aqueles homens sempre levaram aquela vida, parece que nada os incomodava. Os três cunhados eram só pele e osso — os três — mas a sua resistência parecia não ter fim. E o Toino tinha que aprender a resistir…
No dia seguinte, era ainda madrugada, aparece a minha mãe a chamar-me:
— Toino “alabanta-te” que o teu pai já está quase pronto e vai tirar os bois para pôr ao carro.
O Toino ainda reclama que é de noite, mas a mãe tira-lhe os cobertores de cima e obriga-o a levantar-se. Almoçou rapidamente que o pai já o chamava:
— Vamos à vida que os bois já estão ao carro.


Vesti uma samarra — que o tempo estava frio — e sentei-me no carro tangendo os bois, avançando lentamente pela estrada de ia dar aos viveiros. Chegámos à Cale da Vila era ainda noite. Ao passar junto à casa do Sr. Cunha, estranhei ver luz numa varanda da casa que dava para a rua. Olhei com mais atenção e vi o dono da casa ajeitando a sua gravata no pescoço, ao mesmo tempo que olhava o céu, tentando imaginar se iria estar um bom dia de seca (ele era um armador de navios da pesca do bacalhau e tinha também uma seca de bacalhau). E eu que pensava que as pessoas ricas se levantavam quando quisessem (normalmente tarde). Afinal não era como eu imaginava…
Seguimos o nosso caminho, chegámos aos viveiros e começámos a carregar os carros com o moliço que se encontrava à beira da estrada, o que não levou muito tempo, pois com o frio que fazia, quanto mais depressa trabalhássemos mais o corpo aquecia, e não sentíamos tanto a “gerpa” que nos atravessava a roupa e parecia querer colar-se à nossa carne! Finalmente lá carregámos os dois carros, amarrámos as sebes com cordas e partimos de regresso rumo à terra de um dos tios, a quem o moliço desse dia se destinava. Ao passar pela ponte de madeira que liga a Gafanha a Aveiro, com o peso dos carros carregados de moliço, esta balançava que metia medo! Finalmente ultrapassada entrámos no asfalto. À direita ficava a casa do cantoneiro Sr. Sousa, com a velha figueira ao lado. Fiquei mais descansado. Agora era mais meia hora e teríamos os carros descarregados na terra. Depois era ir para casa meter os bois no curral, dar-lhe alimentação e aquela manhã de trabalho estaria terminada.
Depois…
— Vamos jantar que de tarde temos de ia “zurrar” o resto do moliço que está apanhado, para amanhã o irmos buscar para a terra do Tio Zé — diz o pai do Toino. 
Não era costume, mas até deu uma explicação:
— As manhãs estão muito frias, vamos apanhar e zurrar moliço de tarde e aproveitamos as manhãs geladas para o transportar. Sempre se pode trazer mais “roipa bestida” e não se sente tanto frio…
(E eu que pensava que “eles” não sentiam frio…)
Enfim, este período infeliz para o Tónio — o levantar cedo, o frio, o gelo em que se transformava a água dos viveiros, e especialmente a passagem da malta para o estudo a caminho de Aveiro — também havia de acabar! A todos estes tormentos se juntava o gozo dos seus tios “Não quiseste estudar (o que não era verdade) agora o teu corpo é que paga…”
Finalmente terminou a apanha do moliço. O tempo frio parece ir acabar. Viriam as chuvas e com elas, o tempo para ler mais uns livros. Oxalá as chuvas demorassem a ir embora. O tempo aqueceria um bocado e a temperatura seria menos desagradável.
Num destes dias, ao chegar a casa, depois de ter ido apanhar um molho de erva para o gado, diz-lhe a mãe do Toino:
— Chegou uma carta no correio. Penso que é para ti. Toma!
E entregou-lhe a carta. Pelo envelope logo soube donde vinha: Embaixada da Venezuela. Abriu-a rapidamente e leu: para emigrar para a Venezuela era necessário ter lá um familiar, ou outra pessoa que se responsabilizasse pela sua estadia, e lhe enviasse uma carta de chamada… “Para aqui, estou arrumado!” Pensou o Toino olhando para a carta e para sua mãe que curiosa queria saber o que dizia a carta. Contei-lhe o que se passava e ela repreendeu-me:
— Pensas que tens idade para andares por esse mundo fora sozinho? Apanha é juízo…
Bem, ainda há a possibilidade de Angola. A resposta havia de chegar! Eu até tinha lido numa revista que andavam a arranjar pessoal para a tal aldeia de São José de Encoje… Só que pretendiam gente mais madura e pessoal que fosse casado. E eu era novo e solteiro… Tudo contra mim, mas a esperança era a última coisa a morrer. Há que esperar!
E enquanto ia esperando, ia lendo. Qualquer espaço de tempo era por mim aproveitado para ler. Li quase toda a coleção de Júlio Verne. Quem corre por gosto não cansa…
Já ia pondo os olhos para a “Bíblia Sagrada”, obra de quatro grandes volumes. Cada folha era escrita em duas línguas: a coluna da esquerda em português e a da direita em latim, ”iluminadas” com desenhos coloridos, feitos à mão. Verdadeiras obras de arte. Aquela Bíblia tinha com certeza mais de cem anos! Comecei a ler aquela maravilha. Primeiro observava os desenhos longamente… No texto seguinte estava escrito tudo o que eu imaginara ao analisar os desenhos. Assim era mais fácil memorizar os que tinha observado e lido. Levava mais tempo, mas valia a pena.
Ainda me recordo que quando uma vez o meu pai passou e eu estava embebido na leitura, ele me ter chamada a atenção:
— Quando tiveres dificuldade em compreender alguma coisa do que estás a ler vais ao último volume, que está lá explicada toda a interpretação que a gente não compreender da Bíblia…
Fiquei admirado e pensei comigo: “Será que é tão difícil compreender este livro, que deve ter sido escrito para toda a gente compreender?!” Fui andando com a leitura e, algumas vezes, recorria ao tal livro, um volume com muito menos páginas do que os outros.
Mesmo assim, continuei com a leitura. Era interessante, embora já conhecesse parte do que descrevia, pelo que aprendi na “catequese” mas sem qualquer alteração… “Todos os factos ali descritos narrando coisas passadas há milénios, não haviam sofrido alterações? As mentalidades não sofreram evolução? Será que a ciência não evoluiu de modo a poder explicar de outro modo coisas que se passaram há milénios?” E a dúvida começou a tomar forma na minha cabeça. Tinha de haver explicação diferente para muitos dos factos narrados na Bíblia, à luz do saber atual. E eu havia de encontrar as diferenças e a sua razão!
E continuei com a minha leitura, até que cheguei à parte que tratava da conceção e nascimento de Cristo, a sua vida até à sua morte e ressurreição. Já da primeira vez que tinha lido estas coisas me ficaram algumas dúvidas. Hoje era já tarde e resolvi deixar a leitura e ir pensando no caso. E assim fiz. Arrumei o livro e fui dar uma volta até ao quintal para espairecer. A cabeça pesava-me com aquelas ideias… “Porque não era possível, naquela altura, uma mulher ter um filho sem pai, pois seria considerada uma prostituta e seria apedrejada na praça pública, arranjou-se-lhe um marido chamado José, mas que não poderia ter relações sexuais com Maria (seria pecado), tendo-se esquecido o narrador da História de que o Criador ao fazer o homem e a mulher lhes ter dito: “Crescei e multiplicai-vos!” E isso não seria possível, mesmo à luz da razão da época, sem que houvesse uma relação sexual entre homem e mulher… Mas Maria, está escrito na Bíblia, concebeu e deu à luz um filho, sendo virgem e continuando a ser virgem depois de dar à luz…”
O narrador tinha de arranjar uma explicação para o facto! E arranjou: “o Criador enviou à Terra (não somos os únicos seres existentes neste mundo) um emissário, o Espírito Santo, e Maria concebeu por Sua obra e graça. Depois teve um filho a que chamaram Jesus, ficando sempre virgem!”
Esta explicação era, ao tempo, a única aceitável! Ao Criador tudo era possível…
“Mas, e agora? Eu vou ter de continuar a aceitar essas ideias? Não haverá outras respostas? “Comer e calar”, como era uso dizer-se cá em casa? Não. Eu que tenho sofrido como poucos as agruras da vida, tanto morais como materiais e físicas, não as aceitarei. E hei-de descobrir uma razão à luz da ciência atual e o porquê - não direi da mentira da Bíblia — mas da razão de o facto ter sido explicado como o foi. Ah...! “O Espírito Santo desceu à terra e veio num carro de fogo”… Hoje a esse carro de fogo chamaríamos “foguetão” (na altura não existiam…) Desceu sobre Maria e ela concebeu um filho a que deram o nome de Jesus… Naquele tempo como seria possível explicar a inseminação artificial? Só um louco tentaria, mas sem resultado, pois essa prática ainda não existia e ele correria o risco de ser considerado mesmo louco, ele que com as explicações dadas, mostrou ser uma pessoa inteligente. Atualmente já se pratica… Maria deu à luz, sendo virgem e continuando virgem. Mas como era possível explicar isso na altura?! Mulher que concebia, e mais, dava à luz, não poderia continuar virgem.” Mais uma vez o narrador da bíblia teve de utilizar a inteligência: “Maria concebeu, deu à luz, e continuou virgem, por obra e graça do Espírito Santo!” E não havia, na altura, mais explicações a dar! A fé explicaria as dúvidas. Hoje não seria assim, porque a ciência progrediu. A conceção já foi indicada como seria explicada hoje. Quanto ao nascimento seria explicado como se faz hoje, terá havido uma cesariana, pelo que Maria continuou virgem…”


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