sábado, 24 de maio de 2014

"AH, O FAMOSO BISPO DO PORTO!"

Crónica de Anselmo Borges 

Foi com esta exclamação que João Paulo II, na sua visita ao Porto, se dirigiu a D. António Ferreira Gomes, quando ele, já bispo resignatário, apresentou os seus cumprimentos de despedida.
Morreu há 25 anos. Lembrando a data, o que aí fica quer ser tão-só uma homenagem ao homem e ao bispo, cujo lema era "de joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens" e que, em todas as circunstâncias, foi o exemplo superior do que chamo a voz político-moral da Igreja.
Já na famosa Carta a Salazar, que pagou com um exílio de dez anos, exigia a liberdade de pluralismo partidário e sindical e de greve. E lembrava "dois problemas fundamentais" em ordem à paz: 1. "Os frutos do trabalho comum devem ser divididos com equidade e justiça social entre os membros da comunidade"; 2. Os indivíduos e as classes "nunca estarão satisfeitos enquanto não experimentarem que são colaboradores efectivos, que têm a sua justa quota-parte na condução da vida colectiva, isto é, que são sujeito e não objecto da vida económica, social e política." O equilíbrio financeiro "é óptimo", mas "nunca deve deixar de estar ao serviço do Homem".
Preocupava-o a religião das promessas, a religião utilitária, como testemunhou num diálogo, a meu convite, com Óscar Lopes, reconhecendo que "a religião pode realmente ser ópio do povo", pois, "muitas vezes para o povo a religião no geral não significa nada de transcendente." Ora, "o limiar diferencial da religião cristã começa quando alguém se debruça sobre o outro, quando alguém se volta para o que o transcende, seja o outro neste mundo, seja Deus enquanto o Outro absoluto, sabendo que a relação com o Outro absoluto é exactamente também a relação com o irmão". Por isso, "nenhum homem responsável da Igreja poderá dizer que não quer saber de política ou que nada percebe de política".
Após a resignação, foi viver para Ermesinde, onde escreveu as célebres Cartas ao Papa João Paulo II, nas quais aprofunda alguns dos seus pensamentos sobre a sociedade e a Igreja.
Ficam aí alguns extractos. "O Homem não tem liberdade, pois ele é uma liberdade." Por isso, "é bem tempo de acabar com a velha fórmula de "conversão": "Curva a cerviz"". "A Igreja tem de avançar face à História na mesma atitude com que vai ao encontro do dia de Jesus Cristo. Isto obriga-a a um grande esforço para consciencializar-se de si mesma e do mundo a que está enviada." Na linha do que disse A. Camus sobre o suicídio como "o único problema da filosofia", "nós, homens da Igreja, deveríamos sentir que o suicídio de uma pessoa bem dotada é o "único" problema da teologia". "Dificilmente haverá outra pastoral mais necessária e ao mesmo tempo mais difícil" do que esta: a "pastoral da inteligência". "A democracia, que se baseia na liberdade e deve procurar mais liberdade, também não é graça que se receba passivamente nem virtude que seja oferecida de fora: virtude, sim, mas virtude a conquistar-se e dom a merecer-se." "Deus é o futuro absoluto do Homem". "Os cristãos são frequentemente acusados de serem homens do ressentimento, presos ao passado, incapazes dum "grande desejo". É no sentido contrário que está a verdade e vivência do cristianismo." "Apóstolos, sim, mas antes discípulos: apostolado, sim, mas antes discipulado." "É necessário criar um certo conceito de obscenidade neste mundo da comunicação e dos mass media, mundo que está feito "a nossa aldeia", mas para a qual não há as disciplinas morais, culturais e sociais ou de vizinhança que outrora às aldeias se davam."
Ousou entrar em questões melindrosas. Exemplos: dever-se-á reflectir sobre a confissão auricular - "Santo Agostinho nunca se confessou" - bem como repensar o processo de canonização dos santos; a reforma
urgente da Cúria "será baldada se não incluir o desaparecimento da função cardinalícia"; o que se passou no caso do novo Estatuto do Opus Dei foi "um dos factos mais graves da História da Igreja" e dos mais infelizes.
As Cartas ao Papa não receberam resposta. D. António Ferreira Gomes morreu a 13 de Abril de 1989. A rezar o Pai-Nosso.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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