sexta-feira, 6 de junho de 2014

Esposende 1979/80

Crónica de Maria Donzília Almeida

Paço d'Anha


Apesar de Portugal ser um país de pequenas dimensões, comparado com grandes metrópoles mundiais, reúne ainda assim, uma diversidade paisagística notável.
Se compararmos a exuberância duma paisagem minhota com a planura alentejana ou com o litoral escarpado da costa vicentina, deparamos de imediato com enormes diferenças e peculiaridades.
Tive o privilégio, no meu périplo docente de ir conhecendo um pouco dessa riqueza patrimonial e devo confessar que me encantei com a paisagem minhota durante os quatro anos em que com ela me imiscui.




Santoinho

Tinha gravado na memória, as descrições pitorescas dos nossos autores clássicos que me pintaram um Minho cheio de cor e sortilégio. A par com os campos verdes de milho, correm pequenos regatos a lamber os seixos, sob a proteção da vinha de enforcado. Muitas vezes localizada na bordadura dos campos, é ainda hoje, um elemento preponderante na paisagem minhota. O famoso vinho verde, produto único no mundo, é um verdadeiro ex-líbris regional.
A singular paisagem humana tradicional, marcada pelas aldeias com construções em granito ou pelas casas senhoriais, como marco histórico da nobreza de épocas passadas, é outra dimensão frequentemente assumida na caracterização da região, juntamente com a hospitalidade minhota, a riqueza da gastronomia e as vibrantes tradições, festas e romarias.
Quem não tem ainda na memória das papilas gustativas o sabor das papas de sarrabulho, os rojões à moda do Minho, nos doces conventuais, as clarinhas de Fão... uma panóplia de requintados acepipes que enriquecem e caracterizam a região minhota. Os restaurantes locais que frequentei, à altura, fazem jus à reputação alcançada.
A minha primeira incursão no Minho foi em Esposende, ali no caminho para Viana do Castelo. Na altura, e dado que residia no Porto, era a empresa de camionagem Avic que ligava as duas cidades.
No país, vivia-se o período pós revolução de Abril, com a integração dos retornados das ex-colónias, que na zona de Esposende tiveram uma grande expressão. Muitos dos nossos alunos referiam como residência nos documentos escolares, Hotel do Pinhal, Ofir, Fão. Como a memória me traz estas gratas recordações de tempos gloriosos! Sim, porque esses alunos eram de um outro quilate. Coabitavam as raças, mestiça, branca e preta e um destes ficou-me gravado... não só pela altura, mas principalmente pela sua estatura humana e moral – Era o Lourenço, do 7.º ano, tão educado, tão cavalheiro e tão bom aluno a Inglês. A escola tinha, ainda, poucos alunos e a mim, foram-me atribuídas todas as turmas de 3º ciclo: 7.º, 8.º e 9.º, que ao todo não excediam os 20 alunos. Belos tempos em que ensinar era um prazer... ainda que a distância a percorrer fosse mais de 50 km.
 Muita gente de Viana vinha ao Porto tratar de assuntos vários e a camioneta enchia-se de gente de todas as condições sociais.
Um dia, quando o cobrador passava na coxia do autocarro e interpelava uma mulher do povo sobre o destino da viagem, surgiu uma resposta inesperada e bem elucidativa de uma época já remota.
 A senhora vai p’ra Anha?
Não senhor! Eu ainda sou solteira!
Saltou a resposta espontânea e cheia de indignação, seguida de gargalhada geral.
Com efeito, da pequena aldeia de Anha, vinha muita gente do povo ao Porto e a lei do menor esforço aplicada, à língua, resulta numa situação paradoxal.
É também nas imediações de Viana do Castelo, apenas a 5 km, que fica a Quinta do Santoinho, um empreendimento turístico peculiar de indiscutível originalidade, muito conhecido na região norte. Os seus arraiais minhotos, com música tradicional, sardinhas assadas, fêveras, frango, broa e vinho são a expressão da alegria e animação populares. Localiza-se na vila de Darque, na margem esquerda do rio Lima, já com 35 anos de atividade. Para além da componente turística, a Quinta de Santoinho é também um verdadeiro núcleo museológico, como meio divulgador da cultura minhota. Há uma exposição permanente de alfaias agrícolas, tanques, lagares, pias e figuras em granito, de espigueiros, uma adega regional e ainda de antigas viaturas de transporte, como autocarros, automóveis, uma locomotiva do século XIX, carruagens de 1.ª e de 2.ª classe da CP, um coche do século XVII, carros de bois e de cavalos.
No ano de 1980, a empresa que transportava os professores e alunos para as escolas da região ofereceu, no final do ano letivo, uma entrada para o arraial minhoto a todos os docentes. Foi, digamos assim, o prémio de assiduidade e da preferência dada aos transportes coletivos da Avic.

Clarinhas

Ao entardecer de um dia de verão, em julho, via-se um mar de gente a desaguar no enorme recinto do Santoinho. Aí, a música, o calor humano e a convivialidade eram regados pelo tintol que escorria diretamente do pipo, enquanto as sardinhas e os pimentos fumegavam em enormes grelhas. Tudo isto ao som da música de cariz folclórico, que a todos envolvia num rodopio arrebatador.
Havia uma alegria genuína que emanava da nossa juventude, na casa dos 30 anos e a promessa dumas férias, já à vista. Tanta energia, naquelas rodas enormes onde toda a gente entrava, saltava e dava largas à sua vitalidade. Era a minha primeira vez nesta confraternização e o prenúncio de muitas que se seguiriam na minha longa caminhada docente.


06.06.2014

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