sábado, 1 de agosto de 2015

Deixar Deus ser Deus

Reflexão de Georgino Rocha

 A partir do que digo, 
ajustem o vosso modo de pensar, 
alterem a vossa compreensão, 
conformai a vossa vida

Georgino Rocha


Os judeus caem em si. A condição social de origem de Jesus não condizia com o reconhecido estatuto de Mestre e, menos ainda, com o seu discurso após a multiplicação dos pães. Jo 6, 41-51. E, coerentemente, interrogam-se sobre o que está a acontecer: Um artesão de Nazaré da Galileia ser o enviado de Deus? O filho de José e de Maria, bem conhecidos na terra, declarar-se pão da vida? O deslocado de Cafarnaum ensinar, com linguagem dura, “coisas estranhas” na sinagoga? Donde lhe vem tal autoridade? Jesus não entra “no jogo” de pergunta-resposta. Os factos estão à vista, são públicos. A explicação é clara, persuasiva e respeitadora. A mensagem é apelativa, mas não surte efeito. Em vez de se deixarem atrair por Deus e entrar na novidade que o ensinamento de Jesus comporta, começam a murmurar e “estancam” no seu rígido pensar e nos seus velhos hábitos, distanciam-se interiormente e muitos acabam por O abandonar. 
João, o autor da narrativa, destaca a relação de Jesus com Deus Pai e faz uma excelente catequese que choca abertamente com a mentalidade dos ouvintes judeus. Eles, como talvez muitos de nós, têm as suas ideias a respeito de Deus e querem encerrá-Lo nesse quadro de referências. Jesus propõe uma perspectiva diferente: A partir do que digo, ajustem o vosso modo de pensar, alterem a vossa compreensão, conformai a vossa vida. “Não murmureis entre vós, Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que me enviou, não o trouxer”.

A esta certeza chegou Edith Stein, após um longo caminho de procura. Um dia, encontra a autobiografia de Santa Teresa de Ávila. Edith lê o livro durante toda a noite. “Quando fechei o livro, disse para mim própria: é esta a verdade”. Sente-se uma estrangeira no mundo ( era professora universitária). Faz-se religiosa carmelita, vem mais tarde a ser presa pela Gestapo, levada para a câmara de gaz e os seus restos mortais queimados no campo de concentração. Hoje é celebrada com o seu novo nome Santa Teresa Benedita da Cruz.

A atitude dos judeus constitui uma fase especial na vida de Jesus: é a hora da grande surpresa e interpelante novidade, do anúncio do desejo de ficar sempre connosco no pão novo, na eucaristia do seu corpo e sangue, da doação completa, a fim de que o mundo tenha vida em abundância e qualidade, do envolvimento de Deus Pai na realização plena desta entrega definitiva por amor. Jesus cala os seus sentimentos para nos deixar a possibilidade de os pressentir e auscultar, de os saborear em doce intimidade e proclamar em ousadia profética. E aí está o registo da história e o testemunho vital dado por tantos cristãos, a confirmarem a riqueza daqueles sentimentos e a dar-lhe rosto em situações tão diversas. Sirva de referência, como “vozes” falantes desta diversidade, São Tarciso, o menino-mártir da eucaristia que o papa Sixto enviava às prisões de Roma a levar a comunhão, e Óscar Romero, arcebispo de São Salvador, assassinado por um “pistoleiro” a mando do poder opressor do povo, na ocasião da celebração da missa.

“Não murmurei entre vós” – exorta Jesus, aludindo à sua origem humilde, semelhante à de tantos outros que vivem com dignidade e são defensores da verdade, que ganham o pão com o suor do seu trabalho e se esforçam por construir uma família honrada e solidária, que estão disponíveis para o serviço do bem público que é de todos, mas só alguns se prontificam a fazer.

Que oportunidade ainda hoje tem esta exortação. Está em curso a Semana Nacional do Migrante e Refugiado. Chegam e partem pelos mais diversos motivos. Apresentam-se com o seu “berço” étnico e cultural. Fazem a diferença. Necessitam de apoio, de trabalho, de segurança. Oferecem a sua riqueza de valores que muito ajudarão a humanizar a nossa sociedade e, talvez, a revitalizar a fé cristã. Não murmureis, mas procurai acolher, compreender, facilitar a participação, apreciar a comunhão das diferenças.

“Queridos migrantes e refugiados! Não percais a esperança de que também a vós está reservado um futuro mais seguro; Que possais encontrar em vossos caminhos uma mão estendida; que vos seja permitido experimentar a solidariedade fraterna e o calor da amizade!” exorta o Papa Francisco. 

Não murmureis mais. Deixai Deus ser Deus e vede como se manifesta em Mim. Deixai-vos atrair por nós e vereis estas “coisas” com um novo olhar – o da fé confiante; compreendereis a relação que entre nós existe e apreciareis o pão que vos ofereço – o meu corpo na eucaristia – para ser o alimento que vos acompanha na vida e revigora as vossas forças debilitadas – continua Jesus a dizer-nos em surdina, para não provocar incómodo desnecessário a ninguém e para despertar os “ouvidos” do coração humano. Os nossos!

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