sábado, 23 de julho de 2016

As obras de misericórdia (1)

Crónica de Anselmo Borges 


Há hoje um acordo praticamente unânime. Jesus de Nazaré foi um homem, talvez o único, que viveu e comunicou uma experiência sã de Deus, sem desfigurá-la com os medos, ambições e fantasmas que, habitualmente, as diversas religiões projectam sobre a divindade." Quem isto escreve é o grande exegeta José Antonio Pagola. A citação provém do livro Entrañable Dios. Las obras de misericordia: hacia una cultura de la compasión, que escreveu com outro grande teólogo, Xabier Pikaza, e aparece no contexto da definição de Deus. O nome de Deus é misericórdia. "A compaixão é o modo de ser de Deus."
Neste sentido, Jesus contou histórias que abalam uma Igreja clericalizada, centrada no culto. Lá está, por exemplo, o bom samaritano. Um homem foi espancado e roubado, ficando meio morto à beira da estrada. E passou por ali um sacerdote, que se desviou para nem sequer o ver. O mesmo fez um levita que servia no Templo. Mas um samaritano, estrangeiro e considerado herético pelos judeus, que não frequentava o Templo, comoveu-se, aproximou-se, cuidou dele e pagou adiantadamente na estalagem, para o tratarem, prometendo que, na volta, pagaria o que faltasse. O doutor da Lei tinha perguntado: "Quem é o meu próximo." Agora, é Jesus que lhe pergunta: "Quem foi o próximo daquele desgraçado?" "O samaritano." E Jesus: "Vai e faz o mesmo." Não o mandou para o Templo. De que vale o culto desligado da justiça, da proximidade de quem se encontra na valeta da vida?
O juízo final sobre a história do mundo e da humanidade não versa em primeiro lugar sobre coisas directamente referidas à religião, mas à justiça e a esta proximidade: "Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo." E vai haver um espanto: "Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?" E o Deus de Jesus responde: "Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes. Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer."

É arrasador: o que em primeiro lugar decide da salvação não são actos de culto, mas os que contribuíram para um mínimo de dignidade humana. Por isso, Jesus, com escândalo de muitos, porque comia com publicanos e pecadores, coloca na boca de Deus as palavras do profeta: "Quero misericórdia e não sacrifícios." O teólogo José M. Castillo comenta de modo frontal: "Jesus afirma aqui que Deus quer que os seres humanos se comovam com bondade e misericórdia para com os outros, mesmo que sejam maus e até se a prática da bondade implicar a violação de uma lei religiosa. Isto, embora seja um escândalo para os mais puritanos, é o que o Evangelho diz", indo até mais longe, ao estabelecer uma "antítese" entre a "misericórdia" e o "sacrifício", isto é: "O que Jesus diz é que, se for preciso escolher entre a "ética" e o "culto" (entre a "justiça" e a "religião"), o que está primeiro é a ética, a honradez, a defesa da justiça e os direitos das pessoas. Se isto não se antepuser a tudo o mais, Deus não quer que tranquilizemos as nossas consciências com missas, rezas, devoções e coisas do género." É preciso restituir a todas as pessoas o seu bem maior: a dignidade.

E aqui estão as chamadas obras de misericórdia. Misericórdia quer dizer, etimologicamente, olhar com o coração para a miséria do outro, com compaixão, o que significa, também a partir do étimo, sofrer com o outro, fazendo seu o sofrimento dele. A partir daí, há uma comoção e uma reacção, que levam a comprometer-se com a erradicação do sofrimento ou, pelo menos, com o seu alívio, na imediatidade. Como escreveu o dramaturgo famoso Bertold Brecht, marxista e profundo conhecedor da Bíblia: "Contaram-me que em Nova Iorque,/na esquina da rua vinte e seis com a Broadway,/nos meses de Inverno, há um homem todas as noites/que, suplicando aos transeuntes,/procura um refúgio para os desamparados que ali se reúnem.//Não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração./No entanto, alguns seres humanos têm cama por uma noite./Durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua.//Não abandones o livro que to diz, homem./Alguns seres humanos têm cama por uma noite,/durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua./Mas não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração."

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