domingo, 30 de outubro de 2016

A Igreja e a Política: que Igreja e que política? (2)

Crónica de Frei Bento Domingues 

1. Continuando, como prometemos, na temática do Domingo passado, lembro o que escreveu José M. Mardones [1]: depois das revoluções norte-americana e francesa, do século XVIII, marcos da modernidade, a religião abandonou o campo da política. Tinha deixado de ser necessária para legitimar o que podia ser perfeitamente legitimado pela razão humana. Ergueu-se, então, um muro entre Igreja e Estado, muito fino na América e uma separação abrupta e violenta na Europa. A partir daí, os crentes sentiram muitas vezes a tentação, não de trabalhar no âmbito da política, mas de politizar a religião e de religiosizar a política.
Emilio Garcia Estébanez estudou, de forma crítica, o percurso ocidental, desde Platão até aos nossos dias - passando por Aristóteles, os Estoicos, Sto. Agostinho, S. Tomás e Maquiavel, etc. - das relações entre ética e política [2]. Procurou esclarecer a ambiguidade da noção de bem-comum, muito celebrada na Igreja Católica.
Para este filósofo e teólogo, o pensamento ético-político dos estoicos constituiu um dos mais completos da antiguidade, ainda que o seu forte tenha sido a ética. A respeito desta, do ponto de vista histórico, pode-se dizer que eles alcançaram o mais alto nível prático e teórico a que chegou a filosofia moral pagã. Isto pode afirmar-se não apenas em termos relativos, mas também em termos absolutos: a escola estoica, real e objectivamente, construiu um sistema quase perfeito de moral natural, quanto aos seus elementos essenciais.
Em política, a sua concepção sobre a igualdade de todos os seres humanos e o seu universalismo social constituiu, unida às elaborações do mesmo género dos seus antecessores, um corpo completo de doutrinarismo político. Os elementos da doutrina política de Platão e de Aristóteles, enquadrados pela doutrina estoica, teriam criado o panorama político ideal, pouco menos que perfeito. Parece, a esse autor, que o conjunto que poderia ser formado por aqueles sistemas, devidamente articulados, ainda não foi superado por nenhum outro sistema. Além disso, os Estoicos puseram como fundamento de todo o seu filosofar um princípio realmente exacto e frutífero: viver em sintonia com a natureza. Num mundo sem revelação sobrenatural como garantia, o caminho para chegar à verdade consiste em interrogar, com honestidade e sem preconceitos, a natureza.

2. Sto. Agostinho negou que os pagãos pudessem ser virtuosos. Se fosse possível, sem a fé, alcançar a justiça, Cristo teria morrido em vão. Não agiam pelo verdadeiro fim, isto é, para agradar a Deus, pois o único Deus é o dos cristãos. Não basta actuar com energia, constância, afrontando com valentia penas e perigos. É preciso fazer tudo isso pelo Deus verdadeiro. Acusaram Sto Agostinho de dizer que as virtudes dos pagãos eram, apenas, esplêndidos vícios. Nunca o disse expressamente, mas, segundo Estébanez, quem tirou essa conclusão estava na linha das suas invectivas contra os pagãos. Sto Agostinho recusou a existência de uma ética natural.
A doutrina política deste grande génio era uma consequência lógica das suas concepções morais. A finalidade do Estado consiste em promover, sobretudo, o culto divino, cuidar dos bons costumes e práticas dos seus membros, de modo que em nenhum momento se ofenda o Deus verdadeiro. Juntamente com esta, enumera outras finalidades, tais como, manter a paz interior e exterior, promulgar leis que tenham em conta uma justa partilhar dos direitos e deveres, velar pela guarda das leis mediante a aplicação de castigos.
A ideia agostiniana do Estado estava marcada pela convicção de que este deve ser antes de tudo cristão, nos seus membros, na sua actividade e nos seus interesses. Sem esta orientação, degenera num bando de ladrões. A ideia de que o Estado deve, inclusive, aplicar os seus meios específicos, a força, para promover o bem espiritual está a um passo. Sto Agostinho deu esse passo.
Acerca da doutrina política desse grande Doutor da Igreja, S. Tomás de Aquino teve a habilidade de o interpretar num sentido diametralmente inverso. Adopta, sem mais explicações, a definição que Cícero deu do Estado e que Agostinho tinha rejeitado categoricamente.

3. Desde a antiguidade pagã, desde o regime de cristandade, desde as revoluções da Modernidade muita coisa mudou. A melhor de todas foi a Declaração dos Direitos e Deveres Humanos. A globalização, ao não ser a mundialização da solidariedade, nem sempre os respeita e promove. Em 2014 os refugiados já eram 19,5 milhões e 38,2 milhões de deslocados.
A guerra fria regressou mesmo no combate ao DAESH. O panorama político tanto nos EUA como na Rússia, a situação anémica da UE e as ambições da China levantam a pergunta: estaremos a construir um mundo onde haja lugar para todos, em diálogo e cooperação?
Depois de, na Europa, se terem mandado as religiões para a sacristia, para não perturbar a política e a política não perturbar as religiões, estas apresentam-se inopinadamente na praça pública em trajes e armas pouco convencionais.
É preciso repensar tudo, de fio a pavio, e ensaiar outros caminhos. Será isso que pretendem os Bispos franceses? Veremos.

[1] Fe y Política, Sal Terrae, 1993, Bilbao
[2] El bien común y la moral política, Herder, Barcelona, 1970

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