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domingo, 7 de maio de 2017

Descrucificar é evangelizar

Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO



«As notícias do Santuário de Fátima neutralizam o que Bergoglio trouxe de novo: uma evangelização nova, libertadora, descrucificante.»

1. Será que Deus é sádico, Jesus suicida e a Senhora de Fátima, para aliviar o Céu ofendido, sacrifica crianças inocentes?
Não tenho qualquer resposta para estas perguntas que regressam sempre como as gripes. Não as considero desprezíveis, embora nem todos as formulam de forma tão brutal. Passada a euforia da visita do Papa à Cova da Iria, essa questão tornar-se-á ainda mais aguda. Para erradicar a violência em nome de Deus, é fundamental desmascarar todos os lugares onde ela se disfarça. Ainda na missa da quarta-feira da passada Semana Santa embati numa oração que renego: “Senhor nosso Deus, que, para nos libertar do poder do inimigo, quisestes que o Vosso Filho sofresse o suplício da cruz, concedei aos vossos servos a graça da ressurreição.”
Será verdade que Deus, para nos libertar do poder do mal, precisava de fazer morrer o seu Filho no horror da cruz? Gostará Deus do sofrimento de quem mais ama? Poderá ser invocado como Deus um ser tão sádico?
S. Paulo, na famosa Carta aos Romanos, tão celebrada por M. Lutero, para enfatizar a loucura do amor que Deus nos tem e do qual nada nem ninguém nos pode separar, atreve-se a escrever esta barbaridade: “Deus não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por nós todos [1].” Será que Deus gosta mais de nós do que do seu próprio Filho? Não será este um amor perverso?
No Evangelho de S. João, o Pai não exige nada a Jesus e aqueles que o matam pensam que o dominam, mas estão enganados: “Ninguém me tira a vida, mas eu dou-a de mim mesmo [2].” Posição reforçada na Oração Eucarística II: “Na hora em que Ele se entregava, para voluntariamente sofrer a morte...”
Aqui, tudo se complica ainda mais: ou Jesus fingia que sofria e não sofria nada ou gostava de sofrer e, então, era um doente masoquista. Pior ainda, um suicida para nos salvar.
Ao fim e ao cabo: Jesus foi condenado por Deus ou por uma coligação de Herodes e Pôncio Pilatos? [3]
No cenário da Mensagem de Fátima, Deus, o Coração de Jesus e o Coração de Maria estão cravados de espinhos, feridos pelos pecados do mundo. Mas que ideia foi essa, tão pouco celestial, a de fazer com que crianças inocentes assumam a reparação dos estragos feitos pelos pecados dos adultos? [4]

2. É verdade que na história do mundo, quase sempre paga o justo pelo pecador. Se essa desgraça não pode ter aprovação divina, muito menos pode ser Deus a exigir a morte do seu próprio Filho para perdoar as ofensas recebidas.
A teoria jurídico-teológica das exigências da reparação justa da ofensa feita a Deus, elaborada por Santo Anselmo adicionada à concepção do pecado original de Santo Agostinho, deixa Deus muito mal e desgraça Jesus Cristo. Foram tantos os estragos na imagem de Deus e na vida dos seres humanos que o melhor é dispensar definitivamente essa teoria.
Muitos textos [5], ao pretenderem que Jesus estava a realizar o desígnio de Deus, prefigurado no Antigo Testamento — não era um traidor —, permitem leituras vesgas: se era Deus que O entregou, os adversários que o executaram estavam a cumprir a vontade de Deus! No entanto, em lado nenhum, Jesus se apresenta com a seguinte proposta: há muito sofrimento no mundo; eu venho para o alargar e intensificar. Não me parece que o Nazareno se tenha aconselhado com José Saramago para conceber, delinear e realizar a sua missão.
No Evangelho de S. Lucas, Jesus apresenta o seu programa, na sinagoga de Nazaré, servindo-se de uma passagem do profeta Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a boa nova aos mendigos; enviou-me a proclamar aos presos a libertação e aos cegos a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano aceitável da parte do Senhor [6].”
A recepção imediata do público da sinagoga foi simpática, mas acabou mal. Porquê? O programa era bom. A ideia de um ano Jubilar estava prevista no Levítico (25). Convidava ao perdão de dívidas e à libertação dos escravos. A desgraça está nos pormenores. A primeira foi a de fechar o livro antes do tempo: suprimiu a passagem do dia da vingança de Deus. Isto era grave. Parecia que já mandava no texto sagrado. Como não queria nada com a ideia de um Deus de vingança, não leu essa passagem e pronto. A segunda foi pior do que a primeira: o que Isaías dizia do Messias estava a realizar-se nele, Jesus de Nazaré. Era pretensão a mais. “Encheram-se todos de fúria na sinagoga ao ouvirem as suas palavras”, da fúria passaram aos actos, “expulsando-o da cidade, levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a cidade estava construída, para o atirarem dali abaixo. Mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho”.
Os quatro Evangelhos cumprem o que diz o nome: Jesus é um amado de Deus que entrega a sua vida para que seja perfeita a alegria de todos. Nas últimas crónicas já apontei qual foi o caminho de Jesus. O seu programa recusava a dominação económica política e religiosa que crucifica a vida das pessoas, seja onde for. O amor ao sofrimento é doença; o esforço para procurar vencer o próprio sofrimento e o dos outros, nas suas causas e consequências, é amor da vida, é descrucificar [7].

3. Nestas crónicas recusei-me sempre a responder à pergunta: que vem o Papa fazer a Fátima? Julguei que era melhor esperar para ver. Sabendo de quem se trata, alimento o secreto desejo de uma boa surpresa.
Entretanto descobri que o Papa Francisco publicou uma carta apostólica, em forma de motu proprio, que transfere as competências sobre os Santuários para o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização [8]. É precisamente o que mais falta em Fátima: tornar-se um centro propulsor de saída para o mundo e não apenas de um altar de incenso.
São ridículas as notícias colhidas ou veiculadas pelo Santuário sobre os cuidados com a figura do Papa, a sua indumentária para celebrar, o cálice de ouro, a pala para o resguardar do sol e outras futilidades do género. Parecem manifestar o propósito de neutralizar, na Cova da Iria, o que Bergoglio trouxe de novo: uma Igreja de saída para todas as periferias, com gosto da alegria do Evangelho, de uma evangelização nova, libertadora, descrucificante.

[1] Rm 8, 31-39
[2] Jo 10, 18
[3] Act 4, 27-30; Cf. Simon Légasse/Peter Tomson, Qui a tué Jésus?, Cerf 2004; Nathan Leites, Le meurtre de Jésus moyen de salut?, Cerf 1982
[4] Cf. Lúcia de Jesus, Memórias, Edição crítica de Cristina Sobral, Fátima 2016.
[5] Cf. Act. 2, 22-36 //
[6] Lc 4, 16-30
[7] Lc 7
[8] L’Osservatore Romano, 06.04.2017