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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

AS MULHERES NA IGREJA E NA SOCIEDADE

Crónica de Anselmo Borges 

Anselmo Borges 


1- Devemos a vida a uma mulher, à mãe. Claro que também ao pai, mas a nossa mãe poderia ter-nos rejeitado e não nasceríamos. Se alguém se sacrificou e nos amou e ama é a mãe. Dá, pois, que pensar o modo como as mulheres são tratadas ao longo da história e, nessa história, também as religiões são acusadas, pois, com excepção do taoísmo, tendem para a misoginia. Ficam aí alguns textos universais significativos. "A mulher deve adorar o homem como a um deus" (Zaratustra). Um texto antigo budista diz que "a filha deve obedecer ao pai; a esposa, ao marido; por morte deste, a mãe deve obedecer ao filho". "A natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é, portanto, um homem falhado" (Aristóteles). "Toda a malícia é leve, comparada com a malícia da mulher" (Bíblia, Ben Sira). "Dou-te graças, Senhor, por não ter nascido mulher" (oração dos judeus ortodoxos). "As mulheres estão essencialmente feitas para satisfazer a luxúria dos homens. Não permito à mulher ensinar nem ter autoridade frente ao homem, mas estar em silêncio" (São João Crisóstomo). "A ordem justa só se dá quando o homem manda e a mulher obedece" (Santo Agostinho). "Nada mais impuro do que uma mulher com a menstruação. Tudo o que toca fica impuro" (São Jerónimo). "No que se refere à natureza do indivíduo, a mulher é defeituosa e mal nascida, porque o poder activo da semente masculina tende a produzir um ser perfeito parecido, do sexo masculino, enquanto que a produção de uma mulher provém de uma falta do poder activo " (Santo Tomás de Aquino). "Os homens têm autoridade sobre as mulheres em virtude da preferência que Deus deu a uns sobre outros" (Alcorão, que permite desposar duas, três ou quatro mulheres e também bater nas que se rebelem).

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

O CANCRO DA IGREJA



Anselmo Borges 

1. "O Papa Francisco é hoje um dos homens mais odiados no mundo." Esta afirmação recente pertence a Andrew Brown, no The Guardian, que acrescenta: "E quem mais o odeia não são ateus, protestantes ou muçulmanos, mas alguns dos seus próprios seguidores."
Pessoalmente, não sei se trata mesmo de ódio, mas tenho a convicção firme de que Francisco tem na Igreja muitos opositores e inimigos, furiosos por causa das reformas que está a operar e por verem os seus interesses, incluindo o clericalismo e o carreirismo, ameaçados. Sobretudo na Cúria Romana, que, como já aqui escrevi, quando se olha de modo atento para a história, foi fazendo mais ateus do que Marx, Nietzsche e Freud juntos.
Mas, por outro lado, Francisco é hoje um dos líderes mundiais mais estimados, amados e influentes do mundo. A simplicidade e a humildade, a simpatia e o afecto, reais e genuínos, que manifesta pelas pessoas, a começar pelos mais débeis, fragilizados, abandonados, o seu amor pelas periferias geográficas e existenciais, tornaram-no uma figura popular em toda a parte.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Anselmo Borges — Francisco sobre: 4. o diálogo ecuménico e inter-religioso




Anselmo Borges

Ainda os diálogos do Papa Francisco e de Dominique Wolton: Politique et société. Se há palavra que atravessa o livro todo é a palavra diálogo. "Como é que a Igreja poderia contribuir hoje para a mundialização?", pergunta Wolton. E Francisco: "Pelo diálogo. Penso que sem diálogo hoje não é possível. Mas um diálogo sincero, mesmo se for preciso dizer na cara coisas desagradáveis." Foi a avó que lhe abriu as portas da "diversidade ecuménica". Criança, viu umas senhoras do Exército da Salvação e perguntou: são freiras? "Não, são protestantes, mas são pessoas boas." De facto, marcou-o, pois, por exemplo, estamos a celebrar os 500 anos da Reforma e, pela primeira vez, isso acontece com católicos e protestantes, e, depois de tudo quanto na Igreja se tinha ouvido sobre Lutero - "os protestantes iam para o inferno" -, Francisco veio dizer que ele foi "um pioneiro religioso, uma testemunha do Evangelho e um mestre da fé... A intenção de Lutero foi renovar a Igreja, não dividi-la. Era um reformador. Havia corrupção na Igreja, mundanismo, obsessão pelo dinheiro, pelo poder". E encontrou--se com o patriarca de Constantinopla, pedindo-lhe a bênção, e com o de Moscovo.
O diálogo, e concretamente o diálogo inter-religioso, "não significa porem-se todos de acordo. Não. Significa caminhar juntos, cada um com a sua própria identidade". Wolton: "E, no diálogo com o islão, não seria necessário pedir um pouco de reciprocidade? Não há verdadeira liberdade para os cristãos na Arábia Saudita e nalguns países muçulmanos. É difícil para os cristãos. E os fundamentalistas islamistas assassinam em nome de Deus." Francisco: "Eles não aceitam o princípio da reciprocidade. Alguns países do Golfo também são abertos e ajudam-nos a construir igrejas. Porque é que são abertos? Porque têm trabalhadores filipinos, católicos, indianos... O problema na Arábia Saudita é uma questão de mentalidade. Todavia, com o islão, o diálogo avança bem, porque, não sei se sabe, o imã da Universidade de Al-Azhar, no Cairo, Ahmed Mohamed el-Tayeb, veio visitar-me e eu retribuí a visita. Penso que lhes faria bem a eles fazerem um estudo crítico do Alcorão, como nós fizemos com a nossa Bíblia. O método histórico e crítico de interpretação fá-los-á evoluir."

Francisco reconhece, portanto, que para o diálogo inter-religioso é fundamental não tomar os livros sagrados à letra: é necessária uma leitura histórico-crítica. Outro princípio essencial para a liberdade religiosa e a paz entre as religiões tem que ver com a laicidade do Estado, isto é, o Estado não pode ser confessional, o Estado deve ser laico. Para garantir a liberdade religiosa de todos: ter esta religião ou aquela, nenhuma, poder mudar de religião. Francisco: "O Estado laico é uma coisa sã. Há uma sã laicidade. Jesus disse-o: é preciso dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Somos todos iguais diante de Deus." Mas laicidade não é laicismo. Neste, constrói-se "um imaginário colectivo no qual as religiões são vistas como uma subcultura". É necessário "elevar" um pouco o nível da laicidade mediante "a abertura à transcendência". Que quer dizer "um Estado laico "aberto à transcendência"? Que as religiões fazem parte da cultura, que não são subculturas. Quando se diz que não se deve colocar cruzes visíveis ao pescoço ou que as mulheres não devem levar isto ou aquilo, é uma estupidez. Porque uma e outra atitude representam uma cultura. Um leva uma cruz, outro outra coisa, o rabino a kipa, o papa o solidéu" [risos]. "Esta é a sã laicidade. Há exageros, nomeadamente quando a laicidade é colocada acima das religiões. Porventura as religiões não fazem parte da cultura? Serão subculturas?"

Wolton pergunta como é possível chegar ao diálogo com os ateus e os não crentes. Francisco responde que fazem parte da realidade. Há pontos de vista diferentes, mas "a realidade é a verdade". As pontes são o nosso diálogo. Mas deve partir-se da realidade, não da teoria, e "procurar juntos, é um caminho de busca. Procurar". Wolton insiste: "Seja como for, que fazer? Os ateus fizeram muito pela libertação social, política, pela democracia desde o século XVIII. O que é que a Igreja faz? A Igreja diz muitas vezes que "os espera". Mas se são ateus não precisam da vossa espera. Então, como dialogar? Que fazer com os ateus? Porque a Igreja matou muitos..." Francisco: "Noutras épocas, alguns diziam: "Deixai-os tranquilos, irão para o inferno."" Wolton: "Claro" [risos]. Francisco: "Mas nunca devemos falar com adjectivos. A verdadeira comunicação faz-se com substantivos. Isto é, com uma pessoa. Essa pessoa pode ser agnóstica, ateia, católica, judia..., mas isso são adjectivos. Eu, eu falo com uma pessoa. É um homem, é uma mulher, como eu. Um jovem perguntou-me na Polónia: "Que dizer a um ateu?" Respondi-lhe: "A última coisa que deverás fazer é pregar a um ateu. Tu deves viver a tua vida, tu escuta-lo, mas não deves fazer apologia". O diálogo deve fazer-se com a experiência humana. Podemos falar de muitos temas que temos em comum: problemas éticos, coisas humanas. Do que pensamos, dos problemas humanos, como comportar-se... Podemos debater sobre o desenvolvimento humano. E quando se chega ao problema de Deus, cada um diz a sua escolha. Mas escutando o outro com respeito... Podemos falar sem medo - tu és ateu, eu não... mas falemos. Ambos acabaremos no mesmo lugar. Seremos ambos comidos pelos vermes!"

Wolton: "O que é mais difícil: o diálogo ecuménico ou o diálogo inter-religioso?" Francisco: "Segundo a minha experiência, diria que o inter-religioso foi mais fácil do que o ecuménico. Tive muitos diálogos ecuménicos e gosto muito. Mas, se compararmos, o inter--religioso foi mais fácil para mim. Porque se fala mais do homem..." Wolton: "Quando se está próximo, tudo é difícil. Quando se está afastado, é mais fácil. É estranho."


Anselmo Borges no Diário de Notícias 

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Francisco não tem razão? (1)

Crónica de Anselmo Borges no DN 


Não tem razão o Papa Francisco quando, ele que acredita no Evangelho de Jesus enquanto notícia boa e felicitante para todos da parte de Deus e que segue os seus ensinamentos e prática, apela a que todos os católicos, começando por cardeais, bispos, padres, se convertam e sigam também o Evangelho?
Não tem razão quando proclama tolerância zero para essa tragédia que é a pedofilia do clero e estabelece regras claras, internacionalmente reconhecidas, para que acabem as máfias no banco do Vaticano e a lavagem de dinheiro e haja total transparência?
Não tem razão quando exige uma reforma profunda na Cúria Romana, que tem de estar ao serviço da Igreja universal? Não tem a Igreja de respeitar no seu seio os direitos humanos, que não pode pregar apenas para fora, nomeadamente o direito à liberdade de pensamento e de expressão? Não tem razão ao deixar campo livre à missão dos teólogos para poderem investigar?
Não tem razão ao querer que a Igreja enquanto instituição siga um caminho sinodal, isto é, um caminho que se trilha em conjunto, com a participação de todos, uma vez que a Igreja são todos os seus membros? Não tem razão ao declarar que os leigos têm de participar activamente nas decisões da Igreja e que às mulheres tem de ser dado o seu lugar, também em postos cimeiros de decisão, não podendo, como Jesus exigiu, ser discriminadas? De facto, enquanto organização, a Igreja, se quiser seguir o exemplo de Jesus e não ficar cada vez mais atrasada em relação ao mundo, tem dois problemas fundamentais a resolver: por um lado, a democratização e, por outro, a integração das mulheres, sem discriminação.
Não tem razão quando afirma que o celibato obrigatório não é dogma e que é preciso começar a pensar em ordenar homens casados, modelos de virtude e de participação activa na vida da Igreja?
Não tem razão quando denuncia o clericalismo e o carreirismo como "peste" na Igreja? E quando chama a atenção contra os "bispos-príncipes" e os "bispos de aeroporto"?
A Igreja Católica é hoje a única instituição verdadeiramente global. Contra a uniformidade, não tem razão Francisco quando pede uma Igreja que não funcione à maneira de esfera, mas que se realize segundo o modelo do poliedro, isto é, uma só Igreja, mas inculturada nos diferentes continentes e atendendo às várias culturas? Quando se entenderá que a Igreja já não é eurocêntrica e que o Papa não pode ser um monarca absoluto, mas sinal de unidade na caridade? Neste sentido, não tem razão Francisco ao não se referir a si mesmo como Papa, mas como bispo de Roma?
Não tem razão ao propor caminhos de progresso no ecumenismo, apelando por palavras e obras à unidade das diferentes Igrejas e confissões cristãs? Não tem razão ao seguir para Lesbos acompanhado do patriarca de Constantinopla, ao encontrar-se com o patriarca de Moscovo em Havana, ao querer que os 500 anos da Reforma sejam celebrados conjuntamente por católicos e protestantes e ao declarar que Lutero tinha razão e que não queria dividir a Igreja?
Não tem razão ao promover o diálogo inter-religioso de todas as religiões, mais concretamente com o islão moderado? De facto, ele sabe que o número de cristãos e muçulmanos juntos é superior a mais de metade da humanidade, de tal modo que faz sentido a pergunta: se nos entendêssemos todos, não haveria nessa compreensão uma força excepcional a favor da paz no mundo todo? Mas Francisco não tem igualmente razão quando denuncia como blasfema a violência em nome de Deus? E não tem razão também quando apela à comunidade internacional a favor dos cristãos, concretamente no Médio Oriente, vítimas de uma perseguição brutal? Não é verdade que, ainda antes das invasões ocidentais, estava já a caminho uma política de extermínio do cristianismo no Médio Oriente, onde, no início do século XX, os cristãos constituíam ainda um quinto da população? Não é hoje o cristianismo a religião mais perseguida do mundo?
Francisco é hoje um líder político-moral global, dos mais amados, senão o mais amado, dos mais influentes, senão o mais influente. E está ao serviço da paz mundial. Não tem razão, quando diz que a terceira guerra mundial está em curso, embora aos pedaços, às fatias, e o que mais teme é que essa guerra de repente expluda e se torne mesmo global e até nuclear, ameaçando a sobrevivência da humanidade?
Não tem razão quando escreve uma encíclica - "Laudato si" - sobre o meio ambiente e a ecologia integral, para que a humanidade toda tome consciência de que precisamos de salvar a nossa casa comum, pois podemos estar em vésperas de um cataclismo ecológico de dimensões imprevisíveis e irreversíveis? Não tem razão, ele que não é comunista nem marxista, quando proclama, com Jesus, que não é possível servir ao mesmo tempo a Deus Pai e Mãe de todos os homens e mulheres, sem excepção, e ao deus Dinheiro? Que a economia tem de estar ao serviço da pessoa humana, de todas as pessoas, e não da financeirização especulativa, que faz milhões de vítimas? Não é urgente a constituição de instâncias políticas globais, para a regulação dos mercados e da economia global?
Não tem o Papa Francisco razão quando afirma, por palavras e obras, que a Igreja não pode ser auto-referencial, já que a razão da sua existência é o serviço da humanidade? Não era o famoso bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que, com razão, dizia que "uma Igreja que vive para si morre por si"?
Então, porque é que Francisco tem opositores e inimigos? Mesmo sem querer canonizá-lo, a resposta é simples: se se quiser ser honesto, exactamente pelas mesmas razões que Jesus também os teve.

Nota: Imagem da Ecclesia

sexta-feira, 12 de maio de 2017

O que eu penso sobre Fátima (3)

Crónica de Anselmo Borges no DN 



1 O sofrimento das pessoas tem de ser compreendido e respeitado. Perante o sofrimento, os calvários todos do mundo, eu inclino-me, porque me comovo profundamente.
Mas, depois, porque os crentes muitas vezes não foram informados sobre o verdadeiro Evangelho, notícia boa e felicitante da parte de Deus, concebem Deus à maneira de um tirano ou de um déspota, que precisa de sangue e submissão, fazem promessas e, concretamente em Fátima, vão pagá-las, de joelhos ou arrastando-se, sempre com aquela ideia de que talvez Deus se comova. Aqui, há uma pergunta simples: que pai ou mãe sadios, para darem pão e saúde aos filhos, precisam que eles se ajoelhem e se arrastem?
Fátima precisa, pois, de ser evangelizada. E a primeira evangelização é a evangelização de Deus, da imagem que fizemos dele. Jesus veio "evangelizar" Deus. Afinal, Deus é mesmo Pai e Mãe, e o seu único interesse consiste na alegria e na realização verdadeira e plena dos seus filhos. O único sacrifício que Deus quer é o que é exigido para lutar pela dignidade de todas as pessoas e pelos seus direitos.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Transhumanismo e pós-humanismo (4)


1 Depois do êxito mundial de Sapiens, com mais de um milhão de exemplares vendidos, Yuval Noah Harari publicou em 2015 Homo Deus, que, depois de reflectir sobre as ameaças da biotecnologia e da inteligência artificial ao humanismo e que nova religião poderia substituí-lo, termina perguntando em que devemos centrar-nos se pensarmos em termos de meses ou de anos, respectivamente. Se adoptarmos uma visão realmente ampla da vida, "todos os outros problemas e questões são eclipsados por três processos interconectados: 1. A ciência converge num dogma universal, que afirma que os organismos são algoritmos e que a vida é processamento de dados. 2. A inteligência desconecta-se da consciência. 3. Algoritmos não conscientes mas inteligentíssimos rapidamente poderiam conhecer-nos melhor do que nós próprios". Estes processos levantam três perguntas-chave: "1. Os organismos são realmente só algoritmos e realmente a vida é só processamento de dados? 2. O que é mais valioso: a inteligência ou a consciência? 3. Que é que acontecerá à sociedade, à política e à vida quotidiana quando algoritmos não conscientes mas muito inteligentes nos conhecerem melhor do que nós próprios?"

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Jesus e a revolução judeo-cristã

Crónica de Anselmo Borges 

Deus encarnou em Jesus Cristo

1 As sabedorias filosóficas antigas, orientais e da Grécia, elaboraram "espiritualidades" em ordem a uma vida boa, sem passar nem por Deus nem pela fé. Foi frente a essas sabedorias que o cristianismo, a partir da sua herança judaica, ergueu uma orientação nova, religiosa, de salvação, enraizada na fé num Deus pessoal, transcendente e criador. Essa nova representação foi "tão atraente e prometedora" que triunfou durante séculos sobretudo na Europa. Esta é a tese desenvolvida pelo filósofo não crente Luc Ferry, antigo ministro da Educação em França. O que é facto é que, "entre o século V e o século XVII, o Ocidente foi essencialmente cristão, cultural e filosoficamente cristão, de tal modo que a filosofia moderna, a partir do século XVII, mesmo quando foi crítica em relação às religiões, até resolutamente ateia, não deixou de ser marcada de modo decisivo por esta herança religiosa". O fundo de cultura judeo-cristã é omnipresente e por isso "é indispensável" que mesmo os não crentes se interessem e captem os traços fundamentais dessa cultura, para "se compreenderem a si mesmos e compreenderem o mundo dentro do qual vivemos", escreve Luc Ferry. A pergunta é: "Que havia de tão profundo, de tão sedutor, atraente e fascinante na mensagem de Jesus (e concretamente no que se refere à morte que injecta sempre a angústia no coração dos homens), para ter-se arrogado com tanta força o monopólio da definição legítima da salvação e da vida boa, em detrimento das espiritualidades filosóficas que formavam o essencial das sabedorias antigas?"

sábado, 7 de janeiro de 2017

A humanidade de Deus

Crónica de Anselmo Borges 
no DN



Francisco enraizou o seu discurso
precisamente na festa do Natal, 
que é "a festa da humildade amante de Deus"


1 Jesus é "a humanidade de Deus", Deus humanizou-se em Jesus, nele manifestou-se como homem. Por isso, o teólogo José M. Castillo insiste em que a "religiosidade" tem de ser entendida e vivida como Jesus a entendeu e viveu. Dá que pensar: Jesus "manteve uma relação de intimidade constante e familiar com Deus-Pai, mas manteve igualmente uma relação mortalmente conflituosa com o Templo e os Sacerdotes". O Deus da fé cristã é "verdadeiro Deus" e também "verdadeiro homem". O que se passa é que parece mais fácil crer no divino do que crer no humano. Ora, "o cristão não pode crer no divino, se não crê no humano", isto é, "não pode respeitar o divino, se não respeitar igualmente o humano". Quem ofende, humilha, mata, o ser humano, realmente não acredita em Deus. O problema é: "na Igreja há mais religião do que Evangelho." "Jesus deu-se conta de que a religião, tal como funciona, entra em conflito com a felicidade do ser humano, e as religiões proíbem amar certas pessoas, e são exigentes com as coisas mais íntimas das pessoas, mas mostram-se tolerantes com o dinheiro. Não toleram a igualdade: as religiões dão-se mal com a igualdade e têm de estabelecer diferenças: eu posso mais do que tu, e proíbo-te que penses ou digas isso." Por isso, "na Igreja, há tantas coisas que nos indignam e que não podemos aceitar. Porque é que se respeita mais o templo do que a rua? Porque é que se respeita mais certos homens do que certas mulheres? Porque é que o direito canónico concede aos clérigos direitos e privilégios que os leigos não podem ter?" Afinal, "a grande preocupação de Jesus não era se as pessoas pecavam mais ou menos, mas se tinham fome ou se estavam doentes". E Castillo observa, indignado: "Sabem quando é que a Igreja condenou a escravatura? Com Gregório XVI, em meados do século XIX. Porque é que o Vaticano ainda não subscreveu os acordos internacionais para a aplicação dos direitos humanos? Procurem a palavra "mulher" no Código de Direito Canónico. Não a encontrarão." No entanto, sublinha, nos Evangelhos encontramos a profunda humanidade de Jesus, que se manifesta nas suas três grandes preocupações: a saúde, a alimentação e as relações humanas; por isso, aparece a curar doentes, a partilhar as refeições, acolhendo toda a gente, falando com todos, sem excluir ninguém. Aí está: a fé no "divino" e no "humano" não pode valer "só enquanto se refere à "outra vida", pois tem de valer e viver-se também em tudo quanto afecta "esta vida"". E Castillo afirma, com razão, que Francisco coincidirá em muitas coisas com ele, ainda que não em tudo.

sábado, 17 de dezembro de 2016

A revolução de Francisco: "Sou amado, logo, existo"

Crónica de Anselmo Borges no Diário de Notícias




1. Na perspectiva grega, o decisivo é conhecer a essência, por exemplo, o que é Deus? Na perspectiva hebraica, no que a Deus se refere, a perspectiva é outra: o que é que acontece quando Deus está presente? Foi assim que João Baptista, na prisão, mandou discípulos perguntar a Jesus se era ele o Messias. Jesus não deu nenhuma resposta teórica. Deviam eles próprios descobrir a verdade a partir do que viam que estava a acontecer: "Ide contar a João o que estais a ver e a ouvir: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a boa notícia." O Messias verdadeiro é aquele que está presente em nome de Deus a aliviar os tremendos sofrimentos das pessoas, a abrir horizontes de esperança para todos, sobretudo para os pobres e abandonados. Jesus está aí, libertando da opressão e da indignidade, anunciando e realizando um mundo novo de alegria e dignidade para todos. Ele é o enviado pelo Deus compassivo, que sara e cura as feridas e liberta a vida: "Sede misericordiosos como o vosso Pai celeste é misericordioso." Mais do que dogmas e doutrina, o decisivo no cristianismo é a prática libertadora.

A revolução de Francisco foi anunciada desde o início, ao proclamar que ninguém devia ter vergonha da ternura, sendo a missão da Igreja levar adiante o projecto de humanização que Jesus quer: "Vejo com clareza que do que a Igreja precisa é de capacidade para curar feridas. Devemos encarregar-nos das pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano, que lava e limpa as feridas e consola", "caminhar com as pessoas na noite, saber dialogar e inclusive descer à sua noite e obscuridade sem nos perdermos".

sábado, 10 de dezembro de 2016

Prémio Pessoa para Frederico Lourenço

Frederico Lourenço

«Pode dizer-se que o coro de reações ouvidas após se ter conhecimento da atribuição do Pessoa a Frederico Lourenço foi grande e afinado. Desde logo o presidente da República: "Fico muito alegre, muito feliz, como cidadão, como académico e como Presidente da República. Trata-se de uma personalidade ímpar na nossa cultura, trata-se de uma obra também ímpar. As pessoas das mais diversas sensibilidades, religiões, culturas, consideram que é uma obra marcante, e Frederico Lourenço é de facto uma personalidade marcante na universidade portuguesa, na cultura portuguesa".»

NOTA: Quem sou eu para ajuizar do prémio Pessoa atribuído a Frederico Lourenço, o tradutor da Bíblia do Grego original para o Português contemporâneo? Como leitor do primeiro volume daquela tradução, os "Quatro Evangelhos", apenas sublinho que fiquei muito satisfeito. E agora, aconselho a leitura do texto do DN aqui

O islão e as luzes. 2

Crónica de Anselmo Borges 
no DN


Continuo com o Manifesto 
a Favor de Um Islão das Luzes,
de Malek Chebel. 
As outras propostas urgentes:

8. "Sancionar de modo mais severo os autores de crimes de honra." Mas não basta a sanção. É preciso ir mais fundo, libertando os valores de vontade pessoal e escolha amorosa feminina. "Enquanto a mulher não tiver a possibilidade de formular escolhas amorosas independentes, não poderá ser tomada a sério."

9. "Modernizar a lei civil e o código pessoal." Impõe-se um direito positivo mais conforme com o espírito do tempo, não identificado com a sharia, a lei religiosa. Sem se ser radical, "examinar o conjunto do potencial do direito islâmico, determinar a parte ainda viva, isto é, capaz de evoluir, depois adaptá-lo às novas condições de existência dos muçulmanos, afastando o que se tornou caduco. Este estudo deverá denunciar os aspectos mais retrógrados da sharia: cortar a mão ao ladrão e a língua ao mentiroso, colocar de quarentena a mulher durante a menstruação, aplicar a lei de talião, divisão injusta da herança, etc.".

10. "Reavaliar o estatuto da mulher." Toda a misoginia ligada à suposta inferioridade da mulher "desfigura o islão e dá uma má imagem do terceiro monoteísmo". "Repúdio, poligamia, casamentos forçados (e sobretudo casamentos precoces com 11 ou 13 anos), raptos de jovens raparigas, difamação das mães celibatárias e assassinatos perpetrados em nome da honra: aí estão alguns aspectos - flagrantes - da inferioridade jurídica da mulher muçulmana em relação ao homem", fundada na sua anatomia e fisiologia, muitas vezes consideradas mais importantes do que "o seu ser profundo". A mulher não pode ser considerada menor toda a vida.

sábado, 3 de dezembro de 2016

O Islão e as Luzes (1)

Crónica de Anselmo Borges 

Malek Chebel 

Quando, há mais de 15 anos, Malek Chebel lançou a expressão "Islão das Luzes" não imaginava o sucesso que ela havia de encontrar. Nascido na Argélia, M. Chebel morreu no passado dia 12 de Novembro, com 63 anos. Antropólogo das religiões, psicanalista, especialista reconhecido no islão, sobre o qual escreveu obras fundamentais, ensinou em várias universidades, tendo-se tornado particularmente notado pelo seu Manifeste pour Un Islam des Lumières (Manifesto a Favor de Um Islão das Luzes).
Dada a importância da obra e no contexto dos grandes debates em curso sobre esta questão tão complexa como urgente, dedico--lhe a crónica de hoje e a do próximo sábado. Faço-o no mesmo espírito de Malek Chebel: "Na realidade, não há crítica válida a não ser que seja, por essência, autocrítica." O seu valor mede-se pelo "amor que se tem à coisa criticada". Não se trata, pois, de "agredir inutilmente os leitores de sensibilidade muçulmana, mas de fazer apelo à sua capacidade de discernimento e ao seu sentido das responsabilidades". O Manifesto tem 27 propostas para reformar o islão. Assim:

sábado, 26 de novembro de 2016

Últimas Conversas.Testamento de Bento XVI. 2

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias



A convite de João Paulo II, o cardeal Joseph Ratzinger aceitou em 1981 ser Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, com uma condição: continuar a publicar livros. "Porque sentia a obrigação interior de poder dizer algo à humanidade". Gostaria de ter dedicado a vida à "teologia científica". "Todos os escândalos chegam à Congregação". "Que na Igreja há porcaria é conhecido, mas o que o Prefeito da Congregação tem de digerir vai muito para lá". Fez questão em não misturar a sua teologia com os documentos da Congregação: não foi ele, por exemplo, que redigiu a Dominus Jesus, sobre a unicidade da Igreja católica. Confessa que "está feliz com as reformas do Concílio, quando são acolhidas com honestidade, na sua substância." Mas "cada vez mais pessoas perguntavam: a Igreja ainda tem uma doutrina comum? Ora, tenho a convicção de que também hoje devemos estar à altura para dizer o que é que a Igreja crê e ensina".
Confessa as suas debilidades: em 1991, teve uma hemorragia cerebral, seguindo-se imensas dificuldades, acabando por ficar cego do olho esquerdo. Vale-lhe a música, mas precisa de silêncio e de 7-8 horas de sono. Não é um "grande conversador" e é débil de voz, com uma saúde frágil.

sábado, 19 de novembro de 2016

Últimas Conversas. Testamento de Bento XVI. 1

Crónica de Anselmo Borges 



Falei com ele uma vez, era ainda o cardeal Josef Ratzinger. A impressão que me ficou foi a de alguém muito afável, tímido e com um objectivo fundamental: conciliar a fé e a razão. Ao ler agora Letzte Gespräche (Últimas Conversas), e são mesmo as últimas, pois não pensa publicar mais nada e quer destruir notas dispersas, confirmei essa primeira impressão. Estas conversas do Papa emérito com Peter Seewald constituem uma espécie de balanço de uma vida e de um pontificado, sendo esta a primeira vez que um papa o faz. Impressiona a sua dignidade na humildade, reconhecendo os seus limites e fragilidades, procurando ser fiel à verdade, inevitavelmente na perspectiva dele, e sabendo que a última palavra pertence a Deus, de quem espera um juízo misericordioso e para o qual se prepara com serena confiança. Diz: "Crer não é senão, na noite do mundo, tocar a mão de Deus e assim - no silêncio - ouvir a Palavra, ver o Amor." Qual é "o verdadeiro problema deste nosso momento da história? Deus desaparece do horizonte dos homens e, com a extinção da luz que vem de Deus", a humanidade é apanhada pela falta de orientação, "cujos efeitos se manifestam cada vez mais".

Nasceu de uma família modesta, profundamente enraizada na fé da Igreja Católica. O pai era polícia, mas crítico e capaz de pensar pela sua própria cabeça, a mãe era muito cordial. Teve uma infância feliz, com muito afecto. "Para nós era claro que uma pessoa religiosa devia ser antinazi." Foi um miúdo vivaço e algo irrequieto e até "rebelde". O nazismo e a guerra complicaram tudo. Com o tempo, tornou-se "mais reflexivo e menos alegre". Manifestou desde sempre interesse pelas questões religiosas.

sábado, 5 de novembro de 2016

Homenagem a João Lobo Antunes

Crónica de Anselmo Borges 


João Lobo Antunes
Para um dos colóquios Igreja em Diálogo, sobre "Religião e (In)felicidade", também convidei o professor João Lobo Antunes, para falar precisamente sobre "Sofrimento, medicina e o transcendente". Mandou-me o texto da conferência, que ainda não publiquei. O que aí fica é um brevíssima síntese, que é, julgo, a melhor homenagem que posso prestar ao amigo, médico de fama mundial, professor ilustre, homem da cultura, mestre da escrita, humanista, cristão.
"O papel da espiritualidade no contexto do sofrimento e da doença é tema que entre nós habitualmente se mantém circunscrito ao domínio de uma visão confessional da medicina ou da saúde em geral. Devo dizer que este é tópico que me tem ocupado regularmente ao longo dos anos, estimulado, quem sabe, por uma angústia metafísica que periodicamente emerge."

sábado, 29 de outubro de 2016

As últimas palavras de gente ilustre

Crónica de Anselmo Borges 
Tenho muitas vezes um sonho: que a todos, antes do instante supremo da morte, fosse dada a possibilidade de responderem a estas perguntas ou parecidas: "O que é que eu vi da vida? Que digo sobre o mistério de ser, de existir?" Isto resultaria na grande biblioteca da humanidade.
Philippe Nassif publicou Ultimes, resultado da sua investigação sobre as últimas palavras de gente ilustre, antes de morrer, que fez acompanhar de um comentário. O que aí fica, em vésperas do Dia dos Defuntos, é uma selecção.

1. Anton Tchékhov. "Há muito que não bebia champanhe." Médico e escritor russo, comprometido com o alívio do sofrimento e o amor do próximo. Tuberculoso, manda chamar um médico e pede-lhe... champanhe. "Ich sterbe" (estou a morrer). Vira-se para a mulher, pronuncia as suas últimas palavras e esvazia tranquilamente a taça.

2. Luís XIV. "Porque é que chorais? Pensáveis que eu era imortal?" Impressiona que, já no fim, o Rei Sol lembre a sua condição mortal.

3. Johann Sebastian Bach. "Vou finalmente ouvir a verdadeira música." A sua música não fora afinal senão aproximações das harmonias divinas. "O paraíso é música."

4. Marcel Proust. "Agora posso morrer." Reencontrou o Tempo. "Não o dos relógios, mas o tempo verdadeiro, no qual passado, presente, futuro fazem um só e assim nos libertam."

5. Sarah Bernhardt. "Ama." Talvez a maior actriz do seu tempo, antes de entrar em coma, coloca docemente a mão na cabeça de um jovem comediante, a quem deixa a suprema recomendação: "A vida não vale a pena ser vivida a não ser que se saiba desposar, amorosamente, tudo o que acontece."

sábado, 22 de outubro de 2016

Utopias, distopias, retrotopia

Crónica de Anselmo Borges 




Coube-me a honra de um convite para participar no magno evento cultural Folio, na bela Óbidos, com uma fala sobre utopias e distopias, a que acrescentei retrotopia, pelas razões que direi.


1. Foi Thomas More que cunhou o termo utopia, com a publicação, há 500 anos, de A Utopia, cujo título em latim é mais longo: De Optimo Reipublicae Statu Deque Nova Insula Utopia (sobre o melhor estado de uma República e sobre a nova ilha da Utopia). Ele sabia do que falava, concretamente do poder, pois foi chanceler. A Igreja canonizou-o em 1935. A Utopia é uma ilha imaginada lá longe no oceano (utopia tem o seu étimo no grego: ou, que se lê u, que significa não) e tópos, com o significado de lugar. Portanto, Utopia é um não lugar; de qualquer forma, um ideal que indica o caminho.
A utopia supõe a distopia (também do grego: dys, que significa mau, duro: portanto, um mau lugar, o oposto a utopia). Assim, na primeira parte, More critica os males que atravessavam a sociedade inglesa, do despotismo e venalidade dos cargos públicos à sede de luxo por parte dos privilegiados e à injustiça e opressão que provocam. Na segunda parte, descreve uma sociedade ideal, que imaginariamente já se encontra realizada na ilha da Utopia. Neste sentido, embora haja vários tipos de utopias, a utopia nasce como eutopia (mais uma vez, do grego: eu- bom, feliz, e tópos, um lugar bom e felicitante, como na palavra Evangelho: eu+angelion, notícia boa, feliz, felicitante).

sábado, 15 de outubro de 2016

O vinho na Bíblia

Crónica de Anselmo Borges 



Em tempo de vindimas e vinho novo, 
fica aí uma alusão ao vinho na Bíblia.


1. O vinho é tão importante, com funções tão significativas no convívio social e na vida toda, que os antigos até pensavam que ele era uma criação dos deuses. Dioniso - Baco para os romanos - era o deus do vinho, que ensinou aos homens a arte do cultivo da videira e da preparação do vinho. Ele é de tal modo exaltante que, na leitura dos clássicos, da grande literatura, como belos poemas, grandes tragédias, romances geniais, dizemos que ficamos "inebriados". Diante do esplendor da beleza - o maior exemplo, para mim, é sempre a música, a grande música -, há quem exclame: "Uma bebedeira de beleza!" Num dos mais extraordinários diálogos filosóficos de sempre sobre o amor - o Banquete (Simpósio), de Platão -, lá está o vinho. Na Bíblia, as referências ao vinho são muitas. Tanto no Antigo como no Novo Testamento.

sábado, 1 de outubro de 2016

Excepcionalismo

Crónica de Anselmo Borges 



1. Sempre que se fala em religião tem de se atender a uma distinção essencial. Sem ela, todo o debate se anula em confusões. Há a religiosidade, que consiste naquele movimento de transcendimento que se defronta com o Mistério, a que os fenomenólogos da religião chamam o Sagrado. Religioso é aquele que se entrega confiadamente a esse Mistério-Sagrado, do qual espera salvação. Depois, neste enquadramento religioso, entende-se que apareçam as religiões institucionais, que são construções humanas enquanto mediações entre o Mistério ou o Sagrado, Deus, e os homens e mulheres, e entre estes e aquele. Nas religiões, encontram-se concretamente quatro dimensões: a dimensão teológico-doutrinal, a litúrgico-celebrativa, a ético-moral e a organizacional.
Nesta distinção entre religiosidade, religiões e Sagrado-Mistério, entende-se que as religiões estão referidas ao Sagrado, Deus, mas não são Deus, o Sagrado, o Mistério, que todas tentam dizer, mas que a todas transcende. Por outro lado, percebe-se que pode acontecer que alguém tenha feito e faça uma experiência mística, religiosa, de autêntico encontro com Deus e, no entanto, não se relacione, ou pouco, com a religião institucional, como pode acontecer que alguém viva na e da religião institucional, se sirva dela para fins económicos, políticos, estratégicos, de prestígio, etc., - no limite, que alguém mate em nome da religião - e não tenha nenhuma experiência religiosa autêntica, viva.

sábado, 24 de setembro de 2016

Contas. Ética e política

Crónica de Anselmo Borges
 

Procuro seguir o velho preceito de não ir além da sandália (ne sutor ultra crepidam). Mas, desta vez, insistiram tanto que aceitei. Ir falar ao Congresso dos Revisores Oficiais de Contas (ROC). E disse.


1. Quando era pequeno, também andei na escola. Na altura, a gente ia tentar aprender a ler, a escrever e a contar. Contar pareceu-me decisivo, com o ler e o escrever. Fazer contas, o que implicava somar, subtrair, multiplicar, dividir.
Com o tempo, aprendi que alguns só sabem somar e multiplicar para eles próprios. Subtrair também sabem, sobretudo aos outros. Por vezes também subtraem tanto a si próprios que ficam na penúria - no caso dos Estados, acabam por cair na bancarrota. Dividir pelos outros os bens que são de todos - justiça social e equidade - é dificílimo e aprendizagem que exige heroicidade.

2. Ao contrário dos outros animais, que vêm ao mundo já feitos, os seres humanos, nós, por causa da neotenia, vimos ao mundo por fazer, e essa é a condição de possibilidade de sermos o que somos: precisamente humanos, pessoas livres, cuja tarefa essencial no mundo, diria, a única tarefa, é fazermo-nos a nós próprios: vindo à existência por fazer, temos por missão, fazendo o que fazemos, fazermo-nos a nós mesmos. Somos senhores de nós, das nossas acções e, por isso, somos responsáveis por elas e por nós. Que andamos no mundo a fazer? A fazermo-nos. Quem acha que isso é tarefa pouca? E, no fim, tanto pode resultar uma obra de arte como uma vergonha, uma porcaria.
E cá está. Temos de prestar contas pelo que fazemos, pelo que fizemos de nós, em primeiro lugar. Esta é a nossa tarefa ética. Somos, por constituição, seres abertos à ética.