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segunda-feira, 1 de agosto de 2022

A melhor leitura para férias

Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO

“no Ocidente não se levantou outro modelo cultural (e, mais além do cultural, um modelo existencial) mais profundo e mais radical do que o modelo de Cristo. (…)"

Eduardo Lourenço

1. A partir de hoje até Setembro, suspendo estas crónicas. Costumava sugerir algumas leituras para o mês de Agosto. Não vou engrossar a ladainha de todos os que repetem que o cristianismo está em declínio irreversível. A história é o reino das surpresas. Muitas vezes, o que se julgava uma demonstração triunfante do catolicismo, nas viagens dos últimos Papas, veio a revelar-se uma grande manifestação de fraqueza.
Neste momento, o Papa Francisco não foi ao Canadá para recolher aplausos. Foi pedir perdão e penitenciar-se de crimes vergonhosos cometidos contra as famílias indígenas em instituições católicas. Que este gesto penitencial seja bem compreendido, rejeitado ou indiferente, para a opinião pública, não importa. Esta atitude do Papa Francisco não busca aplausos ou esquecimentos. Vale por si mesma ao repor a verdade. Nenhum outro motivo deve ser tido em conta.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Natal e Novo Ano

Crónica de Bento Domingues 
no PÚBLICO

O Papa Francisco não manifesta muito apreço pelo reino das abstracções. Os seus textos referem-se sempre a situações concretas que procuram socorrer o presente e abrir o futuro.

1. O Natal de Jesus de Nazaré inspirou, em todas as épocas, as mais belas obras de arte – música, literatura, pintura, arquitectura – e é possível encontrar nelas uma fonte de alegria porque, como diz Emir Kusturica, a felicidade produzida pela arte é o maior feito dos seres humanos [1]. Inspirou, sobretudo, uma nova arte de viver.
Como escreveu Frederico Lourenço, na Introdução aos Quatro Evangelhos [2], “Na segunda metade do século I da era cristã, o manancial (já de si tão rico) de textos em língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de quatro textos que mudaram para sempre a História da Humanidade. Nesses textos, o leitor escolarizado da época ter-se-ia confrontado com uma temática muito diferente da que conhecia de Homero, Sófocles ou Platão. Pois nestes quatro textos não se falava das façanhas heróicas de reis e de guerreiros, nem se reportavam as conversas de aristocratas atenienses com o lazer e o dinheiro para se dedicarem à filosofia. Aqui falava-se de pescadores e de leprosos; falava-se de pessoas desprezadas pela baixa condição na sociedade, pelas suas deficiências físicas, pelos seus problemas de saúde mental; falava-se de figuras femininas que não eram as rainhas e princesas da epopeia e da tragédia gregas, mas sim mulheres normais da vida real (a queixarem-se da lida da casa ou a exercerem, talvez, a mais antiga profissão do mundo).

domingo, 5 de novembro de 2017

Bento Domingues — A ignorância não é um dever



1. Lutero não passou por Portugal. Na revista Brotéria, de Outubro, tentei explicar porque lhe negaram o passaporte. Apesar disso, de vez em quando, surgem acontecimentos que levam os meios de comunicação a lembrar que existe uma coisa muito antiga chamada Bíblia, que ele próprio traduziu para alemão. Agora parece que foi invocada, juntamente com o código penal de 1886, pelos juízes Neto Moura e Maria Luísa Arantes, para atenuar um crime horroroso contra uma mulher adúltera.
Não admira, dizia-me um leitor de Saramago. A Bíblia está cheia de histórias escandalosas e de maus exemplos. O diabo não precisa de ser muito pior do que um deus que mata e manda matar. Esse livro parece escrito por um bipolar: passa facilmente do sublime ao detestável, por vezes no mesmo salmo. No entanto, cuidadosamente encadernado fica bem numa sala, ainda que pouco frequente numa casa portuguesa. Entre as dificuldades em ler e interpretar esses textos antigos figura uma insistente ignorância ou esquecimento: a Bíblia não é um livro!
Habituados, como estamos, a ver as Sagradas Escrituras cristãs num só volume e a dar-lhes um nome no singular, a Bíblia, somos levados a imaginar que é uma obra que um autor divino escreveu, de fio-a-pavio, mas com mais heterónimos do que Fernando Pessoa. 
Na verdade, não se trata de um livro, mas de uma biblioteca formada por 73 ou 74 obras, segundo o cânone da Igreja católica, e 66, segundo o cânone das Igrejas reformadas. Foi escrita ao longo de vários séculos em diversos contextos geográficos, sociais e culturais.
Sem poder entrar aqui em pormenores, convém lembrar o seguinte: quase dois terços dos livros da Bíblia cristã são comuns ao cristianismo e ao judaísmo rabínico, herdeiro imediato das escrituras do judaísmo antigo. Na verdade, o Antigo Testamento (AT) católico é mais vasto e variado do que o TaNak e o AT das Igrejas reformadas que adoptaram o cânone judaico. A escrita dos livros do AT católico durou cerca de um milénio. Teve como quadro essencial a Palestina. É possível que alguns livros tenham sido escritos, em parte, na Babilónia e outros no Egipto (em Alexandria).
A exegese histórico-crítica mostrou que figuram no AT diferentes géneros literários e temas que são documentados nas outras literaturas próximo-orientais do primeiro milénio a.C., em particular, nas literaturas dos demais povos semitas [1].

2. Os juízes, se queriam referir-se à relação de homens e mulheres na Bíblia, teriam de se aconselhar com o trabalho de investigação e de militância das feministas que reexaminam não só a própria Bíblia, mas também a interpretação que os homens fazem dela, tentando, muitas vezes, justificar e perpetuar uma dominação ancestral, própria de sociedades patriarcais. A mulher era propriedade do marido; a virgem, antes do noivado, propriedade do pai. O adultério da mulher e a defloração de uma rapariga eram, antes de mais, um atentado contra o direito de propriedade [2].
A exegese bíblica feminista assume-se como instrumento de luta pela igualdade social. O seu objectivo expressa-se em termos de emancipação ou de libertação das mulheres. Desse ponto de vista, a leitura feminista da Bíblia é comparada e, em parte, comparável ao trabalho da Teologia da Libertação.
Contrariamente ao que às vezes se afirma, não foi a Bíblia que deu origem à subordinação das mulheres na civilização ocidental. A subordinação era um traço das civilizações europeias antes da chegada da Bíblia. Essas civilizações tinham esse traço em comum com as civilizações do Próximo Oriente de que a Bíblia é uma expressão. O que a Bíblia fez foi dar a essa prática a sua legitimação religiosa.
Sendo fruto da civilização ocidental, o próprio feminismo é herdeiro da mesma Bíblia que deu caução religiosa à supremacia dos homens sobre as mulheres. Por isso, é natural que a Bíblia ocupe um lugar muito importante nos estudos feministas, mas as mulheres ainda estão longe da paridade com os homens. Na Igreja Católica, intérprete autorizada da Bíblia, a hierarquia continua a ser formada só por homens e, além disso, celibatários [3].
O NT não legitima as atitudes dominadoras do AT em relação às mulheres. Pelo contrário, elas estão incluídas no espantoso universalismo cristão, sublinhado por Paulo: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” [4]. No Evangelho de Marcos, mostra-se que o homem pode ser adúltero contra a mulher. Como nota Frederico Lourenço, trata-se de “um desenvolvimento notável rumo à igualdade de género” [5].
Quanto à atitude de Jesus em relação ao apedrejamento de uma mulher apanhada em adultério, aconselho a leitura das admiráveis observações do mesmo autor ao texto atribuído ao evangelista João [6].
Se houve mulheres que se emanciparam para servir o projecto de Jesus, é porque esse projecto as incluía. O Ressuscitado encarregou-as de evangelizar os próprios apóstolos. Daí que a Maria Madalena tivesse sido designada como Apóstola dos Apóstolos.

3. Frederico Lourenço entregou-se a um empreendimento que julguei impossível, quando foi anunciado: traduzir, do texto grego, o conjunto da Bíblia, tradicionalmente conhecido pelo nome de Septuaginta, com apresentação, introdução e notas dos vários livros. Sobre a significação, a originalidade e as explicações acerca da Bíblia Grega, o tradutor encarregou-se de nos elucidar logo no Vol. I, consagrado aos Quatro Evangelhos, em 2016. Em 2017, surgiram o Vol. II, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, e o Vol. III, Os Livros Proféticos. Este, em Outubro. É o segundo acontecimento mais importante do ano para todos os que julgam que a ignorância do mundo bíblico não é obrigatória.
Francolino Gonçalves, O.P., morreu a 15 de Junho deste ano, na Escola Bíblica de Jerusalém, na qual viveu, investigou e ensinou, durante mais de 40 anos. Segundo alguns confrades, sofreu muito por não poder continuar as investigações do AT, que tinha em mãos, especialmente do universo profético, bíblico e extra bíblico, de que era um reconhecido especialista. Tenho muita pena que ele não pudesse acompanhar a obra impressionante de Frederico Lourenço, que lhe daria grande alegria.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Para as informações fundamentais sobre os mundos em que se formou e desenvolveu essa biblioteca, ver o amplo e rigoroso estudo de Francolino J. Gonçalves, Mundos bíblicos, Cadernos ISTA, n.º 18, 2005, pp 7-34.
[2] Ex 20,14; 22,15-16; Lv 20,10; Dt 5,21; 22, 22-29; Ez 16, 38-40.
[3] Cf. Francolino J. Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Bíblica Pontifícia, As mulheres na Bíblia, Cadernos ISTA, n.21 (2008), pp 109-158
[4] Gal 3, 25-28
[5] Mc 10, 1-12 e nota ao v. 11.
[6] Jo 8, 1-11; cf. Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. I, pp.357-360

domingo, 9 de abril de 2017

A Bíblia em praça pública


O projecto de Frederico Lourenço, assumido pela Quetzal, não se limita a uma nova tradução do Novo Testamento mas à tradução de toda a Bíblia Grega, judaica e cristã.


1. Como escreveu, em 2016, o Prof. José Augusto Ramos, o universo cultural, editorial, científico e académico português foi recentemente presenteado com o aparecimento do primeiro volume de uma tradução da Bíblia grega, conceito que nos tem sido estranho, desde há muitos séculos [1]. Este ano, nos finais de Março, Frederico Lourenço inundou todas as livrarias com o segundo volume da tradução da Bíblia grega, o Novo Testamento completo, escrito há quase 2000 anos, cujo original é irrecuperável. Esta tradução está baseada no texto fixado por Nestle-Aland [2].
Para F. Lourenço, a leitura comparativa dos evangelhos canónicos e dos restos que nos chegaram dos apócrifos não deixa qualquer dúvida quanto à imprescindibilidade de Marcos, Mateus, Lucas e João, talvez os livros mais extraordinários da História da Humanidade.
Um padre, espantado com este fenómeno, perguntou-me: mas esse tradutor é padre? Quando lhe respondi que não era padre nem ex-padre, não era católico nem protestante e que neste trabalho prescinde, metodologicamente, de pressupostos religiosos, mostrou-se desconfiado. Aí há gato!

sexta-feira, 24 de março de 2017

2.º Volume da Bíblia de Frederico Lourenço

Já nas livrarias 

Ainda não terminei a leitura do 1.º volume, que inclui os quatro Evangelhos, e já chegou às livrarias o 2.º volume, para completar o Novo Testamento. Tenho muito que ler, sem contar outras novidades literárias que estão à minha espera.

Frederico Lourenço, sublinha, conforme li no Diário de Notícias: «A tradução completa do Novo Testamento é o melhor trabalho que fiz até hoje.» E sobre as críticas referentes ao 1.º volume, diz: «Nenhuma me irritou porque senti que o acolhimento foi muito positivo. Houve a expressão de um ponto de vista previsível, vindo de um determinado setor religioso, mas isso é normal. Cada denominação do cristianismo tem a sua maneira de abordar a Bíblia. A minha tradução não está pensada para nenhuma delas, portanto tem potencial para desagradar igualmente a católicos, a protestantes, a mórmones ou a Testemunhas de Jeová. Ao mesmo tempo, dentro desses quadrantes religiosos, houve pessoas que se interessaram pela minha abordagem e que acham que esta Bíblia não-dogmática pode ser complementar à abordagem teológica e religiosa. Penso que as pessoas já perceberam que ler a Bíblia dentro de uma Igreja é diferente de a ler numa universidade laica, como é a de Coimbra - são duas realidades. Os historiadores e os linguistas não fazem a mesma leitura da Bíblia que farão os teólogos católicos e protestantes. Tudo isso é normal.»

Ler entrevista aqui

sexta-feira, 3 de março de 2017

Frederico Lourenço: O Lugar Supraceleste

Ludwig van Beethoven cantou esse lugar




Comecei a pensar em ler algo do multifacetado Frederico Lourenço quando iniciei a leitura do Novo Testamento da Bíblia, uma tradução do grego, com apresentação e notas de sua autoria. Pouco ou nada tinha lido, não por qualquer razão especial, mas apenas porque não tenho capacidade para comprar e ler muito do que é editado. Certo dessa minha lacuna e do desejo de o ler, um filho meu teve a gentileza de me oferecer O Lugar Supraceleste, uma obra constituída por crónicas em que o autor nos oferece muito da sua grande cultura, enriquecidas por vivências a vários níveis, passando pela música, pela filosofia, pelas artes, etc. E devorei uma a uma acolhendo delas o que me soube melhor.
O título era, à partida, estranho, e só no fim, na última crónica, vem a razão da sua opção que deu título ao livro: O Lugar Supraceleste, que não posso nem deve transcrever muito do que disse por motivos que se prendem com direitos de autor. 
No entanto, ninguém me levará a mal, penso eu, se disser que Frederico Lourenço pega em Platão, um filósofo quase sempre presente no seu pensamento e escrita, para o citar quando diz que ele teve «o desplante de chamar à filosofia a mais alta forma de música», juntando depois «injúria aos insultos já lançados contra os poetas ao queixar-se de que nenhum poeta alguma vez conseguiu cantar o lugar supraceleste que está para lá da abóbada do céu». Depois, ao lembrar que Platão viveu em Atenas no século IV antes de Cristo, diz que ele «não pôde estar presente em Nova Iorque no ano 2000, no dia em que Mikhail Pletnev interpretou a última sonata para piano de Beethoven no Carnegie Hall». Frederico Lourenço conclui assim: «Se Platão lá tivesse estado, teria percebido que a filosofia NÃO é a mais alta forma de música: a música é que é a mais alta forma de filosofia. E, ao ouvir a Arietta desta sonata tocada por Pletnev, o inimigo dos poetas teria sido obrigado a reconhecer que um poeta, pelo menos, cantou esse lugar supraceleste: Ludwig van Beethoven.»

Fernando Martins

sábado, 10 de dezembro de 2016

Prémio Pessoa para Frederico Lourenço

Frederico Lourenço

«Pode dizer-se que o coro de reações ouvidas após se ter conhecimento da atribuição do Pessoa a Frederico Lourenço foi grande e afinado. Desde logo o presidente da República: "Fico muito alegre, muito feliz, como cidadão, como académico e como Presidente da República. Trata-se de uma personalidade ímpar na nossa cultura, trata-se de uma obra também ímpar. As pessoas das mais diversas sensibilidades, religiões, culturas, consideram que é uma obra marcante, e Frederico Lourenço é de facto uma personalidade marcante na universidade portuguesa, na cultura portuguesa".»

NOTA: Quem sou eu para ajuizar do prémio Pessoa atribuído a Frederico Lourenço, o tradutor da Bíblia do Grego original para o Português contemporâneo? Como leitor do primeiro volume daquela tradução, os "Quatro Evangelhos", apenas sublinho que fiquei muito satisfeito. E agora, aconselho a leitura do texto do DN aqui

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Uma Bíblia que “não esconde as realidades inconvenientes”

ANTÓNIO GUERREIRO no PÚBLICO 



«Frederico Lourenço lançou-se sozinho num empreendimento que, pela sua grandeza, foi muitas vezes resultado de um trabalho de equipa: a tradução, do grego, dos 80 livros da Bíblia, o Velho e o Novo Testamento, oferecendo a mais completa tradução da Bíblia que alguma vez foi feita em língua portuguesa. O primeiro volume, contendo os quatro evangelhos, de Mateus, Marcos, Lucas e João, acaba de ser editado. A este seguir-se-ão mais cinco volumes, com os quais se completará a tradução integral da Bíblia Grega.»

Ler texto aqui 

Frederico Lourenço traduziu o Novo Testamento do grego

A minientrevista publicada na revista Sábado 


Frederico Lourenço

O professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra traduziu o Novo Testamento a partir do grego. Até 2020 debruçar-se-á também sobre o Antigo Testamento para completar os cinco volumes da Bíblia, a editar pela Quetzal.

“Um desafio intelectual”

Porque começou com o Novo Testamento? 

O meu projecto inicial era traduzir apenas o Novo Testamento. Mas comecei a interessar-me pela versão grega do Antigo Testamento.

Quais são as principais diferenças relativamente a outras traduções?

No Novo Testamento é a procura de maior exactidão no processo de passar as palavras gregas para português. No Antigo Testamento é o facto de a versão grega (que é a mais longa e completa) nunca ter sido traduzida para português. A latina e a hebraica foram; mas a grega não.

Quais são as escolhas mais difíceis?

A maior dificuldade para todos os tradutores do Novo Testamento são as epístolas de São Paulo, porque estão escritas numa linguagem densa e bastante complexa. Achei um texto muito difícil, mas extraordinário, pelo desafio intelectual que coloca.

A sua tradução tem duas versões do Pai-Nosso (Mateus e Lucas). O que lhe têm dito sobre estas diferenças? 

As diferenças já estão no mais antigo manuscrito completo do Novo Testamento, que é do século IV.

S.C.

Publicado na revista Sábado
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