Mostrar mensagens com a etiqueta Livro de Reclamações. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Livro de Reclamações. Mostrar todas as mensagens

domingo, 16 de julho de 2017

Bento Domingues — Livro de reclamações na Igreja



1. Li, não sei onde, que o Vaticano anda preocupado com a falta de exorcistas em Portugal. Ao comentar essa notícia com um amigo, ele acrescentou logo que, onde faltam, de certeza, é no próprio Vaticano.
Não desejo voltar à conversa dos pseudopreocupados com o Papa: está velho para poder realizar as reformas em que se meteu e a revolução que tentou desencadear não é tão irreversível como alguns supõem e desejam. Os que se julgam mais realistas e radicais acrescentam: não basta a Bergoglio ter encontrado um refúgio fora dos antigos aposentos dos papas; ou fecha o Vaticano para longas obras, ou continuará a espantar-se com surpresas de onde menos seriam de esperar.
Há, de facto, rumores de poucas-vergonhas, que estão a passar para a imprensa, de que os infiltrados, velhos e novos, são como as baratas: quando se abrem as gavetas, desaparecem rapidamente, mas não morrem. Esperam sempre uma nova oportunidade. Haverá alguma empresa capaz de eliminar, de forma eficaz, esses parasitas da chamada “Santa Sé”? Ou será que os diabos do Vaticano já se riem da fábrica de ritos dos seus exorcistas?
Tudo isso pode ter sentido, mas não vai além do anedotário romano. Como diz o Papa, os cristãos de parlatório, que conversam sobre como andam as coisas na Igreja e no mundo, sem paixão por transformar as suas vidas, continuam a flutuar nas suas espreguiçadeiras, enquanto debitam sentenças sem consequências.
Ele próprio, ainda no mês passado, lembrou aos novos cardeais que o caminho é seguir Jesus que os chama a olhar para a realidade, não se deixando distrair por outros interesses, por outras perspectivas: “Não vos chamou para vos tornardes ‘príncipes’ na Igreja e para vos sentardes à sua direita ou à sua esquerda. Chama-vos para servir como Ele e com Ele.” [1]
Quem seguir de perto as intervenções do papa Francisco — homilias, discursos, cartas pastorais, etc. — fica espantado com o grande livro de reclamações, onde vai escrevendo, em nome do Evangelho, o que exige dos padres, dos bispos e dos cardeais.
 Luta por um clero não clerical, confessando-se membro de um povo consagrado a Deus e ao serviço de toda a humanidade pelo sacerdócio comum a todos os baptizados. A função do clero não é a de mandar na Igreja de todos, mas a de ajudar a desenvolver a vocação de todos à santidade. Os padres, os bispos, os cardeais, o Papa, centrados em si mesmos e nos seus títulos de carreira eclesiástica, tornam-se traidores da Igreja.
Bergoglio, no dia em que deixasse de lhes pedir contas, tornar-se-ia conivente dessa traição. Não é por acaso que ele, em vez de se proclamar infalível e Santo Padre, se confessa pecador e pede a oração dos fiéis.

2. Para quem se reconhece na liderança deste Papa, mas perde o sentido da sua própria responsabilidade na reforma actual e concreta de dioceses, paróquias, movimentos, congregações religiosas, a pretexto de que o governo da Igreja, ao mais alto nível, está bem entregue, ainda não percebeu nada do desígnio de Bergoglio.
Quando invoco um livro de reclamações nas igrejas, não é para registar o descontentamento com o funcionamento da cúria diocesana, das secretarias, dos cartórios e dos conselhos paroquiais, da celebração dos mandamentos e da organização da catequese. Por mais importante que seja essa burocracia e o seu bom funcionamento, estaríamos apenas no âmbito do que se deve exigir a qualquer outra organização e que a Igreja não pode dispensar. Se assim fosse, a vida eclesial só precisaria de recorrer às escolas de gestão.
O que pretendo sugerir com o livro de reclamações é uma forma de responsabilização de toda a comunidade. Não é o registo da má-língua. Quem reclama deve estar empenhado na mudança, na reforma da paróquia ou do movimento. Deve reclamar, pois todos os fiéis têm direito à celebração da Palavra, da Eucaristia e dos outros Sacramentos, a não confundir com a leitura escalonada dos livros litúrgicos e de homilias intragáveis ou apenas sofríveis.
Não se pode esquecer que, hoje, em Portugal, as assembleias litúrgicas são compostas por pessoas com muitas competências profissionais e culturais que nunca tiveram oportunidade de oferecer os seus préstimos para a festa dominical. Outras foram-se afastando. Não conseguem suportar a falta de qualidade das celebrações, a começar pelas homilias e acabar nos cânticos: não tenho nada que ver com aquilo nem aquilo tem nada que ver comigo. Repete-se a cena evangélica: porque estais aí o dia todo sem fazer nada? Porque ninguém nos convocou.
 O livro de reclamações deve registar que há muitas pessoas que podem, querem e devem contribuir para que as celebrações recolham as alegrias, as esperanças, as preocupações, as frustrações e os desejos da assembleia celebrante, mergulhando-a na Palavra, na Eucaristia, no canto, na oração transfiguradoras do passado. O primeiro dia da semana é o domingo, o renascer da esperança.

3. O livro das reclamações não regista apenas o que falta. Reclama, de cada um, o que pode dar à comunidade para que ela forme pessoas responsáveis pela sociedade, vendo o mundo a partir dos excluídos e não dos instalados. A celebração tem de formar uma Igreja de saída e não um concentrado de beatos e beatas, preocupados em reconduzir as celebrações e as devoções ao estilo pré-Vaticano II. Não passam de sabotadores do movimento desencadeado pelo bispo de Roma.
Pelo que foi dito, não devia existir nenhum grupo, movimento ou paróquia, sem um livro de reclamações para manter o bom desassossego, a não confundir com o registo dos azedumes, das invejas e, sobretudo, das lutas pelo poder, em nome do serviço, terra de oportunistas.
As comunidades cristãs devem ser um exemplo de perdão e de misericórdia, o que parece incompatível com um livro de reclamações, caderno de encargos, exigências e avaliações.
Não esqueçamos, porém, o que escreveu Tomás de Aquino: “Iustitia sine misericordia crudelis est, misericordia sine iustitia mater est dissolutionis.” (A justiça sem misericórdia é cruel, a misericórdia sem justiça é a mãe da degradação.) [2]
Talvez haja quem pergunte: como realizar esse livro de reclamações?
A imaginação humana e cristã tem sempre alguns recursos.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO 

 [1] Cf. Alocução do Papa Francisco,
28 de Junho de 2017.

[2] Cf. S. Tomas Aquinas, Expositio in Matthaeum S. Thomas Aquinatis Catena Aurea in quatttuor Evangelia. Roma-Taurini, vol. I, 5, 7