domingo, 31 de dezembro de 2017

NA AURORA DE UM NOVO ANO


No balanço próprio do final de 2017, prestes a passar à história, olhamos para 2018 com esperanças ciclicamente repetidas. O novo ano, no íntimo das nossas perspetivas, vai ser muito melhor. 
Propositadamente, regressei a 2004 para reler o que havia escrito no último dia do ano. Tinha criado, nesse mês e ano, o meu blogue Pela Positiva. E manifestei, então, o desejo de que todos devíamos assumir a nossa quota-parte nas responsabilidades de mudar o mundo para melhor. O mundo não estaria, obviamente, muito bem.
Em 2010 já se falava em crise e por isso sugeri que se avançasse, com o otimismo possível e necessário, para um novo ano de lutas, no sentido de conquistarmos o tempo perdido. De mangas arregaçadas, de olhar firme em novos horizontes e de coragem para ultrapassar obstáculos, é nosso dever caminhar em frente, na certeza de dias melhores, disse na altura.
Daqui a uma horas, como é tradição por estas bandas, haverá foguetes, sirenes dos barcos nos portos aqui à porta a assinalarem a sua presença. E outras barulheiras de gente bem disposta animarão a noite. Para alguns, não faltará o espumante, a alegria a rodos, as passas, o otimismo, tudo para afugentar o ano velho de triste memória para muitos, mas também para receber com esperança o ano novo. Outros ficarão calados, porventura esquecidos, imersos em recordações felizes, abertos a sonhos sempre possíveis. É, no fundo, uma forma de receber quem chega e nos bate à porta: O NOVO ANO. Oxalá 2018 não se esqueça do modo gentil como o acolhemos. E daqui a um ano, falaremos disso, se Deus quiser.

Fernando Martins

Nicolau Santos — Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões
in "Sonetos"

Nicolau Santos deixa o EXPRESSO ao fim de “19 anos, 9 meses, 30 dias e uma paixão”, como diz no texto de despedida publicado naquele semanário de referência que acompanho desde a sua fundação. Não sendo muito dado às Economias, embora da minha saiba curar bem, porque sou poupado, lia as suas opiniões em jeito de balanço semanal, para me sentir minimamente informado.
A dada altura, que não posso precisar, Nicolau Santos começou a publicar poesia no meio da aridez da Economia, talvez para amaciar a frieza dos números e a ganância dos resultados positivos no mundo do liberalismo económico, tantas vezes sem alma. E eu passei a gostar mais das suas considerações numa área em que foi e é especialista. 
Na despedida, Nicolau Santos, que também é poeta, brindou-nos, deste vez, com Luís Vaz de Camões, selecionando “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Quis fechar com chave de ouro e penso que acertou. 

FM

Bento Domingues — Um chora, outro faz chorar

1. A inspiração do concílio Vat. II (1962-1965) foi retomada com vigor, originalidade e alegria, por um bispo argentino, em 2013. 2017 foi o ano da contestação ruidosa ao Papa Francisco, acusado, por grupos conservadores, de oito heresias! Como recusa o papel de vedeta, continua ocupado, sobretudo, com as vítimas das mil formas de pobreza e exploração de crianças, adolescentes, adultos, velhos, doentes e com as guerras que provocam mundos de refugiados. Os seus gestos não se destinam a chamar a atenção para a sua pessoa ou para a figura papal, mas sim para a degradação da Casa Comum de que todos somos responsáveis. Não se mostra fascinado por viagens triunfais. Os seus destinos são lugares e situações, onde é preciso estabelecer pontes de entendimento. Tudo isso é conhecido. Não se refugia, porém, no mundo dos grandes princípios, porque sente que uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser sacudida.
Na apresentação dos votos natalícios aos membros da Cúria Romana (21.12.2017), continuou o estilo já adoptado em anos anteriores, mas noutra direcção. Os meios de comunicação destacaram, apenas, uma frase que ele usou, embora não tenha sido cunhada por ele: “Fazer as reformas em Roma é como limpar a Esfinge do Egipto com uma escova de dentes.” Serve para dizer que a sua determinação encontra muitas resistências, mas não vai desistir.
Sabe que existem conluios ou pequenos clubes que representam um cancro infiltrado nos organismos eclesiásticos e, de modo particular, nas pessoas que lá trabalham. Desce ao concreto na denúncia de um outro perigo: “o dos traidores da confiança ou os que se aproveitam da maternidade da Igreja, isto é, as pessoas que são cuidadosamente seleccionadas para dar maior vigor ao corpo e à reforma, mas — não compreendendo a alçada da sua responsabilidade — deixam-se corromper pela ambição ou a vanglória e, quando delicadamente são afastadas, autodeclaram-se falsamente mártires do sistema, do ‘Papa desinformado’, da ‘velha guarda’... em vez de recitar o ‘mea culpa’. A par destas pessoas, há ainda outras que continuam a trabalhar na Cúria e às quais se concede todo o tempo para retomar o caminho certo, com a esperança de que encontrem, na paciência da Igreja, uma oportunidade para se converterem e não para se aproveitarem. Isto naturalmente sem esquecer a esmagadora maioria de pessoas fiéis que nela trabalham com louvável empenho, fidelidade, competência, dedicação e também com grande santidade”.
O Papa Francisco não está preocupado com uma Cúria de puros anjos a quem não haja nada a apontar, uma instituição exemplar para autoconsolo. Seria ficar numa reforma ad intra, numa estética organizativa. O que lhe importa é uma Igreja ad extra, de saída, de diálogo com crentes e não crentes, para chegar a todas as periferias e colocá-las, não só no centro das preocupações das Igrejas e das Religiões, mas também no centro da política mundial.

2. Um caso exemplar foi a sua recente viagem apostólica a Myanmar e ao Bangladesh, países de minoria católica, mas de grande significação na promoção do diálogo inter-religioso em condições extremamente complexas, dada a grave violação dos direitos humanos. A Amnistia Internacional considera que as autoridades de Myanmar estão a aplicar, ao povo rohingya, no Estado de Rakhine, um sistema comparável ao apartheid, descrito como uma “prisão a céu aberto”.
No avião de regresso, foi questionado sobre todos os passos desse percurso. O mais importante era a questão da situação do povo rohingya. Uma jornalista perguntou-lhe o que tinha sentido no encontro com esses exilados no Bangladesh.
Resposta do Papa: “Aquilo não estava programado assim. [...] Depois de muitos contactos, inclusive com o governo, com a Cáritas, o governo permitiu a viagem destes que vieram ontem. [...] Aquilo que o Bangladesh faz por eles é estupendo, é um exemplo de acolhimento. Um país pequeno, pobre, que recebeu 700 mil refugiados...”
“Vinham cheios de medo, não sabiam que fazer. Alguém lhes dissera: ‘Cumprimentais o Papa, não dizeis nada.’ [...] Chegou o momento de eles virem cumprimentar-me. Em fila indiana: já não gostei disto, um atrás do outro. O pior é que, imediatamente, queriam expulsá-los do palco. Nesse momento, irritei-me e levantei um pouco a voz — sou pecador — e repeti muitas vezes a palavra ‘respeito’, respeito! Fiz parar a evacuação e eles ficaram lá. Em seguida, depois de os ouvir um a um com a ajuda do intérprete que falava a língua deles, comecei a sentir algo dentro de mim: ‘Não posso deixá-los ir embora, sem dizer uma palavra’; e pedi o microfone. E comecei a falar... Não me lembro do que disse. Sei que, a dada altura, pedi perdão. Penso que duas vezes, não me lembro.”
“Entretanto, a sua pergunta é: ‘Que senti.’ Naquele momento, eu chorava. Fazia de modo que não se visse. Eles choravam também. Depois pensei que estávamos num encontro inter-religioso, mas os líderes das outras tradições religiosas estavam distantes. [Então disse:] ‘Vinde também vós; estes rohingya são de todos nós.’ E eles cumprimentaram. Eu não sabia o que dizer mais, porque fixava-os, cumprimentava-os... Veio-me este pensamento: ‘Todos nós, líderes religiosos, já falámos. Peço a um de vós que faça uma oração, um do vosso grupo.’ Penso que foi um imã, um ‘clérigo’ da sua religião, que fez aquela oração e eles também rezaram ali connosco. Ao ver todo o caminho percorrido, senti que a mensagem tinha chegado. Não sei se respondi à sua pergunta. Uma parte estava programada, mas a maior parte saiu espontaneamente.”

3. O Papa Francisco chorou com aqueles exilados. Por desgraça, ensinaram a Donald Trump a oração de S. Francisco ao contrário: onde houver paz, que eu leve a guerra; onde houver amor, que eu leve o ódio; onde houver perdão, que eu leve a ofensa; onde houver a união, que eu leve a discórdia; onde houver a verdade, que eu leve o erro, a mentira; onde houver esperança, que eu leve o desespero; onde houver alegria, que eu leve a tristeza; onde houver luz, que eu leve as trevas.
D. Trump parece ter uma paixão especial pelo caos. Sem a promoção da desordem mundial, sem fazer sofrer, sem fazer chorar, não sabe o que fazer como Presidente dos EUA, um cego guia de muitos cegos.
Não vale a pena diabolizar este senhor da guerra e do comércio das armas. É preferível que todos os cristãos, fundamentalistas ou não, o saibam ajudar a descobrir a verdadeira oração de S. Francisco: onde houver guerra, que eu leve a paz. É muito melhor para todos!
Bom Ano!

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

MENSAGEM DO PAPA PARA O DIA MUNDIAL DA PAZ


No primeiro dia do ano de 2018, celebra-se o 51.º Dia Mundial da Paz. O Papa Francisco, atento, como sempre, ao mundo sofredor, dedica a sua mensagem aos “Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca de paz”. E a abrir, formula votos de paz a todos as pessoas e a todas as nações da terra, lembrando que a paz, que os anjos anunciam aos pastores na noite de Natal, é «uma aspiração profunda de todas as pessoas e de todos os povos, sobretudo de quantos padecem mais duramente pela sua falta», e dentre estes, que traz presente nos seus pensamentos e na sua oração, quis «recordar de novo os mais de 250 milhões de migrantes no mundo, dos quais 22 milhões e meio são refugiados».
Atrevo-me a dizer que a leitura da Mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz é obrigatória para todos os católicos e para todos os homens e mulheres de boa vontade, por imperativo de consciência. O Papa, a voz mais autorizada da Terra no presente, dirige-se a todos, em especial aos que pretendem viver e lutar pela paz no mundo, começando na família e estendendo-se depois às comunidades locais e aos círculos mais alargados, sobretudo aos palcos de guerras e violências e de políticas opressoras.

Ler mensagem aqui

Georgino Rocha - Em Jesus, Deus tem Mãe


Santa Maria, Mãe de Deus

Maria surge na liturgia do início do Ano com o título de Santa Mãe de Deus. Título que distingue a sua especial vocação e singular missão. Título que enaltece a humanidade que ela representa. Título que nos faz intuir e acolher que, em Jesus, Deus tem Mãe. Que alegria e encanto! Que apelo a rezarmos com grande devoção: Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores! Que conforto para o nosso esforçado peregrinar nos tempos de intempérie, como os actuais!
Lucas, o evangelista narrador (Lc2, 16-21), leva-nos à gruta de Belém e faz-nos ver uma cena maravilhosa: o encontro dos pastores com “Maria, José e o Menino”. A sobriedade da descrição realça a grandeza da mensagem. E a alusão à atitude de cada um dos intervenientes configura um quadro muito expressivo da maravilha/mistério ali visualizado. O Menino está deitado na manjedoura. Os pastores contam o que os anjos lhes haviam anunciado. Maria, em silêncio, ouvia e conservava em coração agradecido. José, recolhido a um canto, nem deixa perceber reacção, que será certamente de grande admiração. E todos se maravilhavam pelo acontecido. Os pastores mensageiros regressam à vida quotidiana, à pastorícia, exultantes por tudo o que tinham ouvido e visto, cantando o alcance da experiência vivenciada.
O Menino tem nome. Não é um ser indiferenciado, letra ou número. Nome indicado pelo anjo Gabriel, o mensageiro das boas notícias. Nome que é inscrito nos registos oficiais do Templo de Jerusalém por José e Maria, sua Mãe. Nome que sempre o acompanha e fica como memória perpétua na inscrição da cruz no Calvário, a mando de Pilatos. Com o nome que simboliza a sua vocação pessoalíssima de Salvador da humanidade, “Jesus é circundado, conhece o gesto que simboliza a sua pertença ao povo da aliança, a sua integração nas relações familiares e sociais”. (Manicardi Comentário à Liturgia Dominical e Festiva, p. 39).
Jesus pertence a Israel, o povo que é de Deus, a Maria e a José de quem recebe o carinho e a educação familiares, aos avós e vizinhos com quem convive e se socializa, ao Templo com a sua vasta rede de leis e ritos, de práticas e tradições. Jesus entra na realidade que envolve a vida e tece a sua moldura cultural, abrindo a “janela” do mundo, horizonte maior da sua missão salvadora. E nós a quem pertencemos? Pergunta crucial que reclama uma resposta pessoal e clara. Sempre!
“É preciso reconhecermos o mistério em que estamos envolvidos e pelo qual somos acolhidos; é preciso reconhecermos o mistério do outro; é preciso tornarmo-nos atentos à presença divina que nos visita através das presenças das criaturas. A pertença a Deus passa através de pertenças horizontais, familiares, comunitárias”. (Manicardi, p. 40). As relações com o outro e com a comunidade constituem um teste qualificado da nossa pertença a Deus e da nossa fé, que sai confirmada ou desmentida. Façamos a prova da autenticidade. Veremos que é desafiante.
O nome de Jesus significa “Deus salva”. A narrativa bíblica descreve os factos mais marcantes da história da salvação, que atinge a plenitude na vida e missão de Jesus de Nazaré, com os capítulos finais: o trágico pela morte que o elimina; e o da feliz ressurreição pela aceitação incondicional que Deus Pai lhe mostra na manhã da Páscoa gloriosa. “Se os pais exprimem o que desejam para os filhos, dando-lhes o nome, também Deus indica o seu desejo para toda a humanidade ao indicar a Maria o nome que havia escolhido para Jesus.
Deus salva entrando na condição de quem necessita de ser salvo e selando com ele uma relação de amizade envolvente. “Sem ti, Deus não te salvará”, afirma Santo Agostinho. De que precisamos de ser salvos? E o contexto em que vivemos, o nosso ambiente familiar e o mundo do entretenimento, de violências e guerras?
A paz emerge com toda a força como a maior necessidade de cada pessoa e de toda a humanidade. Maria, a Mãe de Jesus, o Príncipe da Paz, é invocada também como a Senhora da Paz.
Acompanhemos o Papa Francisco que envia à Igreja uma mensagem muito apelativa dedicada aos “Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca de paz”. Diz o Santo Padre: “Com espírito de misericórdia, abraçamos todos aqueles que fogem da guerra e da fome ou se veem constrangidos a deixar a própria terra por causa de discriminações, perseguições, pobreza e degradação ambiental.
Estamos cientes de que não basta abrir os nossos corações ao sofrimento dos outros. Há muito que fazer antes de os nossos irmãos e irmãs poderem voltar a viver em paz numa casa segura. Acolher o outro requer um compromisso concreto, uma corrente de apoios e beneficência, uma atenção vigilante e abrangente, a gestão responsável de novas situações complexas que às vezes se vêm juntar a outros problemas já existentes em grande número, bem como recursos que são sempre limitados. Praticando a virtude da prudência, os governantes saberão acolher, promover, proteger e integrar, estabelecendo medidas práticas, «nos limites consentidos pelo bem da própria comunidade retamente entendido, [para] lhes favorecer a integração».
O Papa Francisco e no seu seguimento muitos dos nossos Bispos insistem na necessidade de promovermos a cultura do encontro que tem o selo da fraternidade sem fronteiras e faz brilhar a chancela da dignidade inviolável da cada ser humano. E que Maria, a Senhora da Paz, nos dê a sua bênção de Mãe de Deus realizada em Jesus, o Salvador.

Georgino Rocha

sábado, 30 de dezembro de 2017

Anselmo Borges - O tempo para o diálogo inter-religioso

1. Quando se olha para a situação do mundo, é o teólogo Hans Küng quem tem razão: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, um ethos mundial."

2. A religião tem na sua base a experiência do Sagrado. Crente é aquele que se entrega confiadamente ao Mistério, ao Sagrado, Deus, esperando dele sentido último, salvação. De facto, as religiões aparecem num momento segundo: são manifestações e encarnações, necessárias e inevitáveis, da relação das pessoas com Deus e de Deus com as pessoas. São mediações, construções humanas e, por isso, têm do melhor e do pior, entendendo-se, também a partir daqui, que o diálogo inter-religioso tem de assentar nalguns pilares fundamentais.
Todas as religiões, na medida em que não só não se oponham ao humano mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas, num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social e, por outro lado, estão relacionadas com o Sagrado, o Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá do que possamos pensar ou dizer. Precisamente porque nenhuma possui Deus na sua plenitude, devem dialogar para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todas convoca. Assim, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus e os agnósticos, porque estando de fora mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.
Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos e a realização plena de todas as pessoas. A violência em nome da religião contradiz a sua natureza, que é a salvação. Face a um Deus que mandasse matar em seu nome só haveria uma atitude digna: ser ateu.
Dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal mas histórico-crítica dos Livros Sagrados e a laicidade do Estado, que não deve ter nenhuma religião, para garantir a liberdade religiosa de todos. Evidentemente, a laicidade não se pode de modo nenhum confundir com o laicismo. De facto, a religião tem de ter lugar no espaço público, pois é uma dimensão do humano e faz parte da cultura.

Anselmo Borges no DN

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Alexandra Lucas Coelho - A voz de um outro futuro


«Na sua mensagem de 25 de Dezembro, o Papa Francisco começou por aqui: “Enquanto sopram no mundo ventos de guerra e um modelo de progresso já ultrapassado continua a produzir degradação humana, social e ambiental...” É difícil não querer citar o Papa Francisco quando o ouvimos ou lemos porque há no que ele diz, nas palavras escolhidas, uma qualidade rara da própria palavra, do verbo resgatado à usura, ao abuso. Quem já tenha estado no meio de uma multidão a escutar Francisco é testemunha de como este papa tem uma extraordinária capacidade empática, que vem da postura, da voz, da entoação, da proximidade, ou humanidade, que consegue pôr no que diz, sem nada soar a falso, ou a esforço. Mas, além disso, Francisco devolve às palavras uma força que só por si é acção. Quem diz estas palavras tem o que dizer, e di-lo porque tem de ser.»

NOTA: Texto  de Alexandra Lucas Coelho no Sapo. Uma leitura  para todos os meus amigos.

“ROSTOS DE MISERICÓRDIA - ESTILOS DE VIDA A IRRADIAR”

O mais recente livro de Georgino Rocha




“ROSTOS DE MISERICÓRDIA - ESTILOS DE VIDA A IRRADIAR” é o mais recente livro de Georgino Rocha, presbítero da Igreja Aveirense, a ser lançado no próximo dia 17 de janeiro, no CUFC (Centro Universitário Fé e Cultura), pelas 21h15, contando com a apresentação do Prof. Carlos Borrego e o apoio das comissões diocesanas da Cultura e da Justiça e Paz, bem como da editora Tempo Novo. Trata-se de um trabalho com reflexões, relatos e testemunhos de pessoas que foram, e são, no mundo conturbado dos nossos dias, autênticos sinais visíveis da misericórdia de Deus.
D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima, que prefacia o livro, sublinha a importância da proclamação do Ano Santo da Misericórdia pelo Papa Francisco, que foi «um ato profético». Melhor que ninguém, o Santo Padre faz uma leitura em profundidade da época atual do mundo «dilacerado, ferido, cheio de feridas na vida pessoal, familiar e social», e, ao mesmo tempo, «cínico em virtude da globalização da indiferença, do individualismo mais exacerbado e da cultura do descartável». E, citando mais uma vez o Papa Francisco, diz: «Sem a misericórdia temos hoje poucas possibilidades de compreensão, de perdão, de amor. Por isso não me canso de chamar a Igreja à revolução da cultura.»
O Bispo de Leiria-Fátima salienta, noutro passo do "Prefácio", que o Padre Georgino procurou responder à «questão de Deus no nosso tempo», superando a «imagem de Deus justiceiro, tremendo e violento», pondo em evidência, contudo, «a face de amor misericordioso e de benevolência», graças a uma linguagem «mais propositiva, dialógica e existencial, própria do estilo de vida irradiante». 
D. António Marto afirma que autor nos apresenta o amor misericordioso que nos ajuda «a ler com mais profundidade e com maior verdade o mundo contemporâneo», não focando apenas os aspetos negativos, mas levando-nos a «descobrir os aspetos e os germes positivos que o fermentam, tais como os anseios de uma cultura de misericórdia, ou seja, a cultura do encontro e do diálogo face à cultura da indiferença e do descartável». 
Na “Chave de Entrada: A fragilidade humana e a misericórdia”, Georgino Rocha salienta que este é o tempo da misericórdia porque «Cada dia da nossa caminhada é marcado pela presença de Deus, que guia os nossos passos com a força da graça que o Espírito infunde no coração», mas também o é para que «os pobres sintam pousado, sobre si, o olhar respeitoso, mas atento, daqueles que, vencida a indiferença, descobrem o essencial da vida». Mas ainda é o tempo da misericórdia, para que cada pecador não se canse de pedir perdão e sinta a mão do Pai, que sempre acolhe e abraça».
O autor refere na “Apresentação”, com o subtítulo “Quero acordar a aurora”, que, tal como o salmista, «é seu propósito fazer ressoar, em todo o universo, que a fidelidade do Senhor é para sempre e o seu amor é maior do que tudo quanto existe». E defende que «a voz da consciência continua a fazer-se ouvir», sobretudo «em experiências que semeiam os germes do futuro e em pessoas que são amigas do humano integral, que há em todos, ainda que sofra mutilações graves». Por isso, Georgino Rocha afirma que é necessário «praticar o discernimento evangélico», base da interpretação dos «sinais messiânicos», procurando ser coerente. E nas opções, lembra que urge «praticar a pedagogia da liberdade». 
Frisa, depois, que os Rostos de Misericórdia são pessoas concretas com «Estilo de vida a irradiar», com nome registado «no livro da vida» e com «identificação assinalada em obras notáveis reconhecidas pelas sentinelas do bem comum e do bom senso, com memória perdurável inscrita no coração de milhões e milhões de pobres que são assistidos e libertos da opressão que vitimiza a sua dignidade humana».
Georgino Rocha dedica o trabalho — “ROSTOS DE MISERICÓRDIA - ESTILOS DE VIDA A IRRADIAR”— Ao Papa Francisco, incansável missionário da Misericórdia, da Paz e da Esperança; A Dom António Francisco dos Santos, o bispo da proximidade amiga e do sorriso e da bondade contagiantes; Às famílias cristãs, chamadas a ser oásis de misericórdia e escolas de acompanhamento, focos irradiantes da alegria do amor e da nova aurora que desponta para a humanidade e para a Igreja, apesar das fragilidades com que se debatem. 

Fernando Martins

Georgino Rocha — Em família, Jesus cresce em sabedoria



Festa da Sagrada Família


Lucas, o narrador dos relatos da Infância de Jesus, traz-nos, hoje, o estilo de vida da família de Nazaré, após a apresentação do Menino no templo de Jerusalém. (Lc 2, 22 e 39-40). E a Igreja destaca este estilo de vida como característica peculiar da Sagrada Família, dedicando-lhe a festa que estamos a celebrar, e como foco inspirador de toda a família humana, especialmente a cristã.
De facto, é neste modelo ideal, que os textos evangélicos apresentam, que se vão “desenhando” os valores estruturantes de toda a convivência humana, relacional, conjugal, eclesial; de toda a família em que as relações interpessoais estão marcadas pela vida de “comunhão” no seio de uma comunidade que São João Crisóstomo qualifica de “igreja doméstica”. Feliz expressão que desvenda horizontes novos que mobilizam as melhores energias humanas. Feliz expressão que mostra a riqueza de uma realidade insubstituível, apesar da fragilidade que a constitui. Feliz expressão que alia a seiva que circula nas veias do corpo aos laços da fé, gerando uma harmonia digna do maior apreço.
Hoje, somos convidados a relançar o olhar atento e carinhoso à nossa família de sangue, a admirar o que lhe dá vigor e consistência e é fruto do nosso cuidado constante, a reconhecer que há sombras a iluminar e limites a superar. Numa atitude sadia, sem ingredientes de fantasia adolescente nem de desilusão acabada. O Natal ensina-nos a viver um realismo confiante.
Lucas condensa o que acontece a Jesus na família de Nazaré em duas simples frases: “ O Menino crescia, tornava-se robusto e enchia-se de sabedoria. E a graça de Deus estava com Ele”. Resumo denso e eloquente, onde brilha a luz que irradia para todo o mundo; onde, para evitar dispersões, se resume o núcleo da novidade cristã, que convém saborear e transmitir.
A família de Nazaré mostra-nos o valor do acolhimento que se abre à surpresa de Deus e, como humana que é, dá o seu consentimento livre após o diálogo de clarificação indispensável. O Evangelho de João faz-nos ver a origem da decisão de Deus quando o Seu Verbo de faz carne. Lucas e Mateus narram com delicados pormenores o que acontece a Maria e José. E, segundo eles, Jesus é o Mestre do acolhimento incondicional. Que oportunidade de mensagem quando tantas atitudes mostram fronteiras fechadas, casas trancadas, corações blindados. A par de tanta abertura e solidariedade, a sociedade e a Igreja, a família e as associações humanitárias ainda persistem na discriminação e na exclusão. Nem todas por igual, é certo. Mas com acentos bem notórios e indignos da nossa dignidade comum.
Maria e José acolhem-se mutuamente: como noivos que aguardam o tempo necessário para a vida em comum; como responsáveis pela vida nascente da parte de Deus em Maria; como fiéis cuidadores do Menino e de suas múltiplas necessidades. O relato deste cuidado traz-nos um fio de ouro a brilhar nas peripécias que vão ocorrendo e nas atitudes de paciência humilde e de coragem confiante que vão cultivando.
Da experiência inicial de acolhimento mútuo, abrem-se aos outros, a Isabel e a João Baptista, a Simeão, a Ana e a tantos nazarenos que lhe batem à porta ou encontram na rua. A vizinhança constitui um bom espaço para o exercício deste valor humano. E a família alargada, também, sobretudo os idosos que o Papa Francisco considera, por vezes, “exilados ocultos” nas suas casas ou na dos filhos, em lares e residências.
Do aconchego na gruta de Belém, apesar da pobreza inclemente, e silêncio contemplativo e da admiração suscitada pelo que se diz do seu Menino, são forçados a partir para o desterro, a enfrentar a intempérie do deserto, a abrigar-se em qualquer recanto do país de destino. São induzidos a regressar à terra natal, a estar em Jerusalém e satisfazer as prescrições legais, a debater-se com desencontros numa das idas ao Templo com o seu Menino, agora adolescente.
As fronteiras do seu coração iam alargando. E as margens do possível atingem uma medida única: a de ver o Filho deixar a casa familiar e começar a sua missão em público, como profeta itinerante nas terras da Galileia. Atitude quem nem os outros familiares compreendem. Só se aceita por amor confiante e dedicação exclusiva porque “a graça de Deus estava com Ele”, afirma Lucas na conclusão da leitura de hoje.
Maria, sua Mãe, deixa-nos um eco da sua estranheza: “Filho, porque procedeste assim connosco?” Pergunta a que Jesus responde com outra que desvenda a nova dimensão que já vive e que se propõe anunciar: “Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?”. O caminho para Jerusalém deixa-nos indicações preciosas e claras sobre este ponto.
Os conterrâneos de Nazaré fixam-se no tempo em que vive com eles, ia à sinagoga, trabalha e convive. “Nascido de Maria, Jesus de Nazaré andou pelos caminhos de terra da humanidade, afirma em síntese de retrato que alarga os tempos iniciais.
Sim é Ele, podemos dizer nós com fé de convicção. A sua Família ficará a ser para sempre o referencial para a nossa humanidade e os seus valores a iluminar os nossos esforços generosos em lhes darmos rosto irradiante de beleza, amor e paz. E a Igreja, como mãe solícita, sobretudo das pessoas mais necessitadas, recomenda o Papa Francisco: “deve pôr um cuidado especial em compreender, consolar e integrar”, evitando agravar a sua situação já tão sofrida. (AL 49).
A família de Nazaré ensina-nos a ser agradecidos. Tal como Jesus tem em José e Maria os seus referentes iniciais, assim todo o ser humano necessita absolutamente de os ter. Não pode haver orfãos biológicos, sociais, culturais ou religiosos. O sentimento de pertença está primeiro. O olhar sorridente da mãe e os braços robustos do pai ajudam a estrurar a personalidade de cada um/a.
Em família, Jesus crescia em humanidade, robustecia-se em sociabilidade e enchia-se de sabedoria. Oxalá se possa dizer o mesmo de todas as crianças do mundo porque beneficiam do suporte de um ambiente familiar tão consistente que os pais e avós lhes proporcionam.

Georgino Rocha

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Depois do Dia de Natal


Depois do Dia do Natal e do descanso a que a agitação natalícia me obrigou, agitação apetecida que nos faz mais felizes, volto, lentamente, ao dia a dia. E para começar ou recomeçar, nada melhor do que passar os olhos pela comunicação social cheia do bom e do mau que há no mundo: Guerras, raivas, tristezas, acidentes e mortes, mas também  alegrias, festas, generosidade e muitos sonhos. E de tudo quanto li e vi, deixo este simples texto de Sena Santos, no Sapo:  

Valha-nos o Papa

domingo, 24 de dezembro de 2017

Bento Domingues — Natal: biologia ou cristologia?


«Jesus Cristo realiza, corrige e supera as esperanças não só de Israel, mas de toda a humanidade. O movimento cristão é um movimento de saída universalista. Está na sua lógica derrubar os muros criados entre povos e religiões. Jesus Cristo é, na sua própria pessoa, a reconciliação»

1. A Eucarística do passado Domingo começou com um manifesto poético e musical centrado na alegria do Evangelho. Esta flor da fé cristã é, muitas vezes, sufocada por regras, preceitos, proibições e rezas que a cobrem de tristeza. Quando um membro da assembleia celebrante lembrou que o Papa Francisco fazia anos, o canto e as palmas festejaram nele a esperança de um mundo outro e de uma Igreja outra, interpelada a destruir todos os muros.
Estaremos hoje a celebrar os anos do menino Jesus? Não são as incertezas históricas acerca do dia, do ano e do lugar de nascimento que impedem essa festa. O Natal é a evangelização inculturada de uma festa cósmica e política do império romano [1]. Não se manifesta como a primeira preocupação dos escritos cristãos.
S. Paulo não mostrou particular interesse pelo itinerário terrestre de Jesus de Nazaré. Era, como toda a gente, nascido de uma mulher. Neste caso sob a Lei judaica que ele julgava ultrapassada. Nada indica que o tivesse conhecido pessoalmente. A sua experiência é de ter sido sacudido até às raízes por Jesus ressuscitado. Viver com Ele era o que lhe interessava e convencer as outras pessoas de que a morte tinha sido vencida. Esta não era a última palavra sobre a existência humana [2]. A ressurreição realizava o eterno encontro com Jesus na glória do Deus vivo. Para S. Paulo, o mundo estava a chegar ao fim. Habitar com Ele para sempre era o seu grande desejo. A sua tarefa evangelizadora destinava-se a mostrar a todos que a última estação da viagem da vida não era a morte. Essa era só a penúltima. Insiste, na primeira Carta aos Tessalonicenses, o primeiro escrito do Novo Testamento (NT), que nem os que morreram há muito tempo nem os que morrem agora estão perdidos. O Senhor virá ao encontro de todos. Sente a urgência em dizer isto por causa da alegria que descobriu nessa esperança [3]. Em questão de prazos, S. Paulo tinha-se enganado. Na Segunda Carta tem de corrigir a sua precipitação, pois o resultado foi catastrófico: alguns dentre vós levam vida à toa, muito atarefados a não fazer nada. A ordem que vos deixei foi esta: quem não quer trabalhar que não coma [4] e acabam as vãs especulações.
S. Pedro, na Segunda Carta, resolve a questão do tempo de forma muito mais aleatória: um dia diante do Senhor é como mil anos e mil anos como um dia [5].

2. Como o fim nunca mais vinha, as comunidades cristãs não podiam viver só da pregação de que o crucificado era, agora, o ressuscitado para sempre [6]. Não tinham conhecido Jesus de Nazaré nem acompanhado o seu percurso. Era preciso quem contasse o que se tinha passado para quando já não houvesse ninguém para dizer: eu vi, eu sei como foi. Sem isso, como interpretar o sentido da revolução do Nazareno para os novos tempos?
Assim nasceram, no seio das comunidades cristãs, diversas pela geografia e pela cultura, diferentes narrativas. S. Lucas explica essa situação de forma muito clara: “Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos factos que se cumpriram entre nós — conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e servidores da Palavra —, a mim também me pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo, desde o princípio, escrever-te, de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste” [7].
Nasciam, assim, as Cristologias Narrativas. A primeira, a de S. Marcos, começa por apresentar Jesus a pregar o Evangelho de Deus. O tempo está pronto e o Reino de Deus está próximo. Mudai de mentalidade e acreditai no Evangelho.
Marcos começa pelo fundamental. Mas a curiosidade não está satisfeita. Este Jesus nasceu adulto? Mateus e Lucas escreveram aquilo a que se chama, impropriamente e de modo diverso, os Evangelhos da Infância. Apresentam a alegria do nascimento de Jesus e de João Baptista. Aí, começam as confusões.
Ao não se ter em conta que são admiráveis narrativas teológicas, desliza-se para uma biologia de conveniência que acaba por ocultar o essencial. Continua-se a discutir a forma como Jesus foi concebido e como nasceu. Não faltaram as declarações mais absurdas: Nossa Senhora, virgem antes, durante e depois do parto. Jesus passou por Maria como o sol pela vidraça.
Ao evitar a reflexão, sobre os textos, sobre o seu tecido simbólico e sobre os seus jogos de linguagem, recorre-se a algo muito certo — a Deus nada é impossível —, mas resvala-se para concepções pseudomilagrosas que deixam mal o Espírito Santo, Maria de Nazaré, Jesus e S. José. Perdeu-se a beleza e a verdade dessas espantosas narrativas. Quando se procede assim, pode-se perguntar: então por que é que não se ficou apenas com o Evangelho de S. Marcos?

3. Os textos do NT interpretam o sentido cristão do Antigo: Jesus Cristo realiza, corrige e supera as esperanças não só de Israel, mas de toda a humanidade. O movimento cristão é um movimento de saída universalista. Está na sua lógica derrubar os muros criados entre povos e religiões. Jesus Cristo é, na sua própria pessoa, a reconciliação. Como dirão os textos: Ele é a nossa paz [8]. Estas declarações interpretam o sentido da prática histórica de Jesus de Nazaré. Isto que se nota nas narrativas da sua vida adulta não é fruto do acaso. É fruto de um desígnio de Deus. O seu agir espantoso não era uma sucessão de milagres. Era Deus no tecido de uma vida humana, igual a nós excepto na maldade. Nasce humano e foi crescendo em idade, sabedoria e graça, perante o espanto de Maria [9]. O Emmanuel não é só Deus connosco, é um de nós.
Não nasce só de Israel e para Israel. Nasce de toda a humanidade e para toda a humanidade, como mostra a genealogia de Lucas: filho de Adão, filho de Deus [10].
As narrativas do NT nasceram para continuar a prática de Jesus na vida das pessoas e das comunidades. Isso aconteceu há dois mil anos. Às vezes caímos na tentação de pensar que basta uma nova linguagem da Fé para os dias de hoje. É um pensamento justo e curto. São indispensáveis narrativas que contem as histórias de vida do encontro do Evangelho da Alegria com as situações actuais da nossa humanidade. Se não exprimirem esse encontro real, só podem produzir reportagens de literatura barata.
O Papa Francisco sabe que a Igreja não tem de resolver os problemas de há dois mil anos. O que o preocupa é o casamento vital da Igreja com as situações que precisam de um hospital de campanha. O importante não são as festas do Natal, mas a transformação da vida numa festa para todos. Como ele diz: “A luz de Natal és tu quando com uma vida de bondade, paciência, alegria e generosidade consegues ser luz a iluminar o caminho dos outros.”

Boas Festas!

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] José Manuel Bernal, Para Viver o Ano Litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001
[2] Cf. 1Cor 15
[3] 1Ts 4, 13-18
[4] 2Ts 2 – 3
[5] 2Pd 3, 8-14
[6] 1Cor
[7] Lc 1, 1-4
[8] Ef 2, 14 ss
[9] Lc 2, 41-52
[10] Lc 3, 23-38; comparar com Mt 1, 1-17

Georgino Rocha — EM JESUS, DEUS FAZ-SE HUMANO. ACREDITA!



«Fazer Natal é mergulhar nesta maravilha, deixar-se banhar pela sua originalidade, imbuir-se da sua “magia e encanto”, cuidar da criança que há em nós, cultivar o sorriso na vida e a simplicidade educada na relação, ser, dentro do possível, discípulo~missionário de Jesus. Fazer Natal é reconfigurar as arcaicas imagens de Deus que povoam o nosso imaginário e, ainda, muitas orações litúrgicas e devoções populares.»



Definitivamente 

EM JESUS, DEUS FAZ-SE HUMANO. ACREDITA!


O evangelho de João, antes de apresentar os relatos da vida de Jesus, abre com um solene Prólogo, levando-nos em visita ao princípio de tudo. Faz-nos lembrar o artista/escritor que só narra a beleza do rio e das suas margens, da água fluente e do seu percurso, depois de nos levar à fonte para, aí, contemplar e saborear as origens de tanta abundância e frescura. Bela opção, a augurar um significativo texto com episódios emblemáticos da missão de Jesus e do seu alcance universal.
A fonte de tudo é Deus. Ele está no princípio, quer ser o protagonista no meio, caminhando connosco e com toda a criação, e acolher-nos no fim. Paulo lembra aos atenienses que n’Ele vivemos, nos movemos e existimos; como alguns dos vossos poetas disseram: «Somos da raça de Deus» (Act 17, 28).
O manancial de Deus manifesta a sua vida íntima a jorrar na criação do mundo e da biodiversidade, por força da sua Palavra, o seu Verbo, na superação do caos pela harmonia, das trevas pela luz, da solidão pela comunhão. A Palavra divina, sábia e fecunda, ergue-se em som vibrante que se repercute ao longo da história: ”Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança” e toma o rosto do masculino e do feminino, em atração de reciprocidade complementar.
Quando chega o momento aprazado por Deus, Ele que tinha falado de muitos modos e vezes, sobretudo pelos profetas, envia o seu Filho nascido de Maria, a jovem de Nazaré, a quem é dado o nome de Jesus. Decisão admirável, apelativa e reconfortante. Decisão arriscada, pois o ser humano, ao abrigo da liberdade, é capaz do melhor e do pior, como a história documenta abundantemente.
Deus faz-se humano em Jesus, recém-nascido. O espaço de encontro fica devidamente assinalado pela estrela de Belém. As circunstâncias envolventes o configuram e caracterizam. E do silêncio eloquente da gruta ergue-se o apelo/convite: Vinde e reconhecei a grandeza da pequenez, a humanidade do divino, a divindade do humano. Só em Jesus, vemos e conhecemos a Deus. Só em Jesus, vemos e conhecemos o homem. Que maravilha e encanto! “Da sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça”, refere o autor da narração, que afirma ao concluir: “A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer”.
Quem pode imaginar maravilha tão desconcertante!? Deus despojado de tudo aquilo com que adornaram a sua aparição na história, assumindo a fragilidade de uma criança como título de glória, dependendo de cuidados vitais de proximidade imediata, sem outra dignidade que a do ser humano e dos direitos inalienáveis que lhe são reconhecidos. Quem pode imaginar a novidade, agora exposta, do caminho de realização pessoal e relacional, de êxito na vida e de sucesso na missão?! Deus para humanizar a sociedade e o mundo opta pelos sem poder nem riqueza, sem prestígio nem influência. E aposta na convivência e na comunhão com todos, no humano que há em cada pessoa.
O que podemos conhecer de Deus é o que brilha “no menino envolto em panos e deitado na manjedoura”, adianta Lucas numa expressão cheia de poesia e ternura. A grandeza de Deus é a humanidade deste recém-nascido. Deus torna-se homem como nós, “um da mesma massa que nós” no dizer de Santo Hipólito de Roma.
Ao agir assim, deixa perceber o que pretende: Que o homem, seguindo as pisadas do Filho Jesus Cristo, encontre Deus em plenitude. “Eis a maravilhosa permuta celebrada no Natal. A encarnação narra que tudo o que é humano, da conceção à morte da pessoa, é objecto da solicitude e do interesse de Deus, está envolvido pelo amor de Deus”. (L. Manicardi, (2017), Comentário à Liturgia dominical e festiva, Ano B, Paulinas, p. 36. E este autor prossegue: “A encarnação diz-nos que a vida de Jesus, no seu desenrolar quotidiano e humaníssimo, feito de encontros e de amizades, de serviço e de amor, de dedicação radical aos irmãos e de obediência ao Pai, ensina-nos a viver segundo Deus”.
Perante esta realidade sublime, brota espontânea a exclamação de São Gregório de Nazianzo: “Ó admirável comércio!”; comércio/permuta de dons que explicita, dizendo: “Aquele que enriquece os outros torna-se pobre. Aceita a pobreza de minha condição humana para que eu possa receber os tesouros de sua divindade. Aquele que possui tudo em plenitude, aniquila-se a si mesmo; despoja-se de sua glória por algum tempo, para que eu participe de sua plenitude”.
Fazer Natal é mergulhar nesta maravilha, deixar-se banhar pela sua originalidade, imbuir-se da sua “magia e encanto”, cuidar da criança que há em nós, cultivar o sorriso na vida e a simplicidade educada na relação, ser, dentro do possível, discípulo~missionário de Jesus. Fazer Natal é reconfigurar as arcaicas imagens de Deus que povoam o nosso imaginário e, ainda, muitas orações litúrgicas e devoções populares.
Dom António Moiteiro, na sua mensagem de Natal, realça uma dimensão consequente ao afirmar: “O amor desceu à terra. A caridade chegara ao coração dos homens, vinda do coração de Deus, para fazer a sua morada definitiva entre nós… Só a partir da humildade, da pobreza interior, da simplicidade de coração, se poderá estar preparado para descobrir na humanidade a divindade de Deus, que quis enraizar-se na história dos homens. Esta humildade é inspiração para todos os fiéis”.
Definivamente, em Jesus Deus faz-se humano. Acredita, admira, celebra e testemunha. Boas Festas!

Georgino Rocha

sábado, 23 de dezembro de 2017

Senos da Fonseca — Amanhã

Amanhã ...

Vem aquecer-me a alma, 
Vem à minha porta
Dizer que ainda
Vale a pena
Por pequena que ainda seja
A pena de tal desdita,
Marear na barca da vida.

E se meu corpo está velho
Meus olhos ainda voam
Com as gaivotas,
Que vão e logo voltam
Guiadas pela minha sombra,
Vêm trazer as saudades
Dos que de mim se apartaram.

Quem parte das saudades se aparta
Quem fica, com elas se afaga.
Fica a alma tão perdida
Sem saber se deve partir
Ou cumprir o seu fadário:
De Natalar neste canto, aqui recolhida
À espera, de se apartar, vencida.


SF  Natal 2017

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Evocando a Dona Rosinda, Parteira



Rosinda Clotilde de Almeida Borrelho, natural de S. Salvador, Ílhavo, onde nasceu a 3 de março de 1928, exerceu a profissão de parteira da Casa dos Pescadores,  na década de 50 do século passado. Trabalhou no Posto Médico de Aveiro, situado na Av. Dr. Lourenço Peixinho, e posteriormente foi colocada no Posto da Gafanha da Nazaré, desde o seu início. Reformou-se por limite de idade.
Entre nós, era conhecida por Dona Rosinda, parteira, que ajudou inúmeros gafanhões a entrarem no mundo, sem regatear esforços para atender as parturientes. Tanto quanto me lembro, era uma profissional serena, disponível e muito experiente, percebendo, exatamente, o momento em que devia sair de sua casa para ajudar quem estava mesmo a precisar dos seus serviços.
Já lá vão algumas décadas quando um dia fui acordado para chamar a Dona Rosinda. Alta madrugada, levantei-me apressado e dirigi-me a sua casa, na Cale da Vila, Gafanha da Nazaré, rogando-lhe o favor de me acompanhar para um parto. Perguntou-me quando teriam começado as dores e eu lá lhe disse que estariam no início. “Então, venha cá daqui a duas horas”, disse-me ela.
Regressei a casa da parturiente e confirmei o que havia dito à Dona Rosinda. Não fui dormir e na hora combinada bati novamente à sua porta. No meu carro, adiantou-me, com toda a naturalidade, que as dores do parto assustam muito quem está a sofrer e os familiares ou amigos, motivo por que devemos ter isso em conta. Chegou, tranquilizou quem estava, pediu o que tinha a pedir e fez o seu trabalho com toda a tranquilidade. E levei-a, no final, a sua casa.
Escrevo estas notas sobre a Dona Rosinda porque soube que, apesar dos seus 90 anos, está obviamente limitada, mas continua entre nós, viva e rija. Mas também o faço por uma questão de justiça e em jeito de homenagem a uma profissional que, como tantos outros, nas mais diversas atividades, cumpriu os seus deveres com dedicação, superando-se, caindo depois no esquecimento. 
Votos de saúde e paz interior para a Dona Rosinda. 

Fernando Martins

MaDonA — A Prenda

Museu Guggenhein

Basílica de Lourdes




Basílica de Santo Inácio de Loiola 

Cena do Presépio

Cena do Presépio

Com a aproximação do Natal, anda toda a gente num corrupio a fazer as compras para por no sapatinho. Ainda se usará? Eu optaria por um chinelo ortopédico, mais adaptado a uns pés cansados de tanto calcorrear as veredas da vida. Alguém preocupado com a minha saúde já me deu de presente. 
As prendas que a sociedade de consumo fomenta e alimenta, acabam por ser para muitos, a mais importante componente do Natal. Dá-se tudo, aquilo que se desejou ao longo do ano, aquilo que o marketing impõe pelos olhos dentro nos mass media, a que os mais afortunados têm acesso. Os outros, que lutam diariamente pela sobrevivência, ficam-se pela miragem. 
O dinheiro compra tudo, menos aquilo que não tem preço e que só está ao alcance de alguns: uma fatia de tempo, um sorriso magnânimo, dois dedos de conversa a quem está só, um ombro amigo a quem precisa, etc, etc Isto não faz parte do rol das prendas que se trocam pelas festas. São muito dispendiosas, custam os olhos da cara...só para quem pode! 
Apesar de preferir as últimas, ainda sou um pouco materialista (!?) e recebi a minha prenda de Natal antecipadamente. 
Mal entrou dezembro, o Menino Jesus, solícito e sempre atento, depositou-ma na caixa de correio, a clássica, não a eletrónica como se usa hoje em dia. Modernismos à parte, Ele que tudo sabe e tão bem conhece os seus filhos diletos (Serei?) trouxe a esta criatura algo que lhe é muito caro. Nada de guloseimas, vestuário, perfumes, eletrodomésticos...mas sim um cheque viagem, com prazo de validade. Teria que ser usado de três até nove de dezembro. Conhecedor profundo do gosto que esta criatura tem de conhecer, enfim, andar por este mundo de Cristo, satisfez-lhe este desejo. 
Desta vez, conduziu-a ao País Basco, outrora tão badalado pelas lutas independentistas, mas agora mergulhado na maior tranquilidade 
Uma pausa, após a longa viagem, foi feita nas Termas de Cestona, em Zestoa, num ambiente rodeado de montanhas e coberta por uma exuberante vegetação. Fomos a banhos, num antigo edifício de construção renascentista, em que o salão de jantar de tetos altos e lustres magníficos nos deleitava com o espetáculo de pinturas murais 
Aí perto ficam as praias de Zumaia e Zarautz convidativas na estação quente. 
Como a oferta foi feita pelo Menino Jesus, o grupo resolveu fazer turismo religioso, seguindo a rota das catedrais, a iniciar no País Basco, em Loyola. 
O Santuário construído na casa natal de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus dos padres jesuítas, localiza-se em Azpeitia. 
É de estilo barroco, destacando-se a sua cúpula de 24 metros de diâmetro. O museu que integra o majestoso monumento é um repositório de arte sacra do século XVIII. 
Dada a relativa proximidade, demos uma saltada a Bilbau, onde visitámos o Museu Guggenheim. De arquitetura moderna, vanguardista, passou a fazer parte de um plano de desenvolvimento maior, cujo objetivo era renovar e modernizar a cidade industrial. Quase imediatamente após sua abertura em 1997, o Guggenheim de Bilbau tornou-se uma atração turística popular, com visitantes de todo o mundo. 
Embora a forma metálica exterior pareça uma flor observada pelo topo, o edifício mais se assemelha a um barco visto do solo, evocando o passado industrial portuário da cidade. Construído em titânio, calcário e vidro, as curvas aparentemente aleatórias do exterior são projetadas para captar a luz e reagir ao sol e ao tempo. 
A imponência deste museu fica-se pela arquitetura do edifício de linhas ousadas e materiais inovadores 
Em seguida e porque estávamos a dois passos da fronteira, rumámos a Lourdes onde Nossa Senhora é venerada após a sua aparição, no dia dia 11 de fevereiro de 1858, a Bernadette Soubirous, na gruta de Massabielle. Era uma camponesa de 14 anos, enquanto recolhia lenha com a irmã e uma amiga. Este santuário mariano é local de concentração de peregrinos que acorrem de todas as partes do mundo. Lado a lado com a sumptuosidade da basílica, convivem as lojinhas, onde se vende toda a espécie de artigos religiosos e outros, levados como souvenirs. De entre toda a amálgama de artefactos e bugigangas saltou-me à vista a quantidade enorme de pequenos bidãos de plástico para transporte de água de Lourdes, local sagrado. 
De regresso ao país basco, visitámos a Catedral de Burgos, um dos monumentos mais bonitos da arte gótica, que mereceu o título de Património Mundial da Humanidade em1984. A sua construção foi iniciada em 1221, seguindo os padrões góticos franceses. Possui modificações importantes nos séculos XV e XVI, como as que incluíram o pináculo da fachada principal e a cúpula do transepto, elementos de gótico flamejante que conferem ao templo o seu perfil único e inconfundível. 
Para terminar em beleza, após a despedida de nuestros hermanos, no regresso, pernoitámos no Sabugal. Em gratidão ao Menino Jesus, o patrocinador da viagem, fomos visitar o presépio, organizado pela autarquia, que merece uma apreciação detalhada pela sua espetacularidade. Uma notável recriação da vida social do tempo, a uma escala, que quase envolve o visitante nas cenas do quotidiano, retratadas com enorme realismo. 
Obrigada Menino Jesus. 

3 a 10 de Dezembro 

M.ª Donzília Almeida 

Anselmo Borges - O Menino Jesus de Fernando Pessoa


"O seu Menino Jesus representa a procura terna e eterna da paz e da reconciliação, na simplicidade daquele Menino eternamente criança e humano."

1 - Ainda era Outubro e já havia anúncios comerciais lembrando o Natal. Já se esqueceu que o Natal de Jesus é o Natal do Emanuel, o Deus connosco, e, consequentemente, o Natal da dignidade divina da pessoa humana, da liberdade, da fraternidade, dos direitos humanos, da igualdade radical de todas as pessoas. Isso foi lembrado pelos grandes: Hegel, Ernst Bloch, Jürgen Habermas, entre outros. Esquecendo o essencial, fica-se afundado na correria das compras e na concorrência opressiva das prendas, dentro da sofreguidão consumista insaciável, lembrando o velho mito do tonel das Danaides. E será o inessencial e o cansaço.

2 - Fernando Pessoa, o génio da melhor literatura mundial de sempre, também confessou o seu cansaço. Mas, ele, ele era por causa do mais profundo e essencial: o pensar: "O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,/Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo." "O que há em mim é sobretudo cansaço/ (...)/ Um supremíssimo cansaço/íssimo, íssimo, íssimo,/Cansaço..." Por isso, suspirava por voltar à inocência dos tempos de criança. O Menino Jesus seria o reencontro da inocência perdida: "Num meio-dia de fim de Primavera/Tive um sonho como uma fotografia./Vi Jesus Cristo descer à terra./Veio pela encosta de um monte/Tornado outra vez menino,/A correr e a rolar-se pela erva/E a arrancar flores para as deitar fora/E a rir de modo a ouvir-se de longe./Tinha fugido do céu. Era nosso de mais para fingir/De segunda pessoa da Trindade./(...)/ No céu tinha de estar sempre sério/(...)./Um dia que Deus estava a dormir/E o Espírito Santo andava a voar,/Ele foi à caixa dos milagres e roubou três./Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido./Com o segundo criou--se eternamente humano e menino./Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz/E deixou-o pregado na cruz que há no céu/E serve de modelo às outras./Depois fugiu para o Sol/E desceu pelo primeiro raio que apanhou./Hoje vive na minha aldeia comigo/É uma criança bonita de riso e natural./(...)/A mim ensinou-me tudo./(...)/Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro./Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava./Ele é o humano que é natural,/Ele é o divino que sorri e que brinca./E por isso é que eu sei com toda a certeza/Que ele é o Menino Jesus verdadeiro./ (...)/A Criança Eterna acompanha-me sempre./A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando./O meu ouvido atento alegremente a todos os sons/São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas./Damo-nos tão bem um com o outro/Na companhia de tudo/Que nunca pensamos um no outro,/Mas vivemos juntos e dois/Com um acordo íntimo,/Como a mão direita e a esquerda./Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas/(...)/Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens/E ele sorri, porque tudo é incrível./Ri dos reis e dos que não são reis,/E tem pena de ouvir falar das guerras,/E dos comércios, e dos navios/Que ficam fumo no ar dos altos mares./Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade/Que uma flor tem ao florescer/E que anda com a luz do Sol/A variar os montes e os vales/E a fazer doer aos olhos os muros caiados./Depois ele adormece e eu deito-o./Levo-o ao colo para dentro de casa/E deito-o, despindo-o lentamente/E como seguindo um ritual muito limpo/E todo materno até ele estar nu./Ele dorme dentro da minha alma/E às vezes acorda de noite/E brinca com os meus sonhos./Vira uns de pernas para o ar,/Põe uns em cima dos outros/E bate as palmas sozinho/Sorrindo para o meu sono./... Quando eu morrer, filhinho,/Seja eu a criança, o mais pequeno./Pega-me tu ao colo/E leva-me para dentro da tua casa./Despe o meu ser cansado e humano/E deita-me na tua cama./E conta-me histórias, caso eu acorde,/Para eu tornar a adormecer./E dá-me sonhos teus para eu brincar/Até que nasça qualquer dia/Que tu sabes qual é./... Esta é a história do meu Menino Jesus./Por que razão que se perceba/Não há-de ser ela mais verdadeira/Que tudo quanto os filósofos pensam/E tudo quanto as religiões ensinam?"
Em apontamentos soltos, o próprio Fernando Pessoa reconheceu que escreveu "com sobressalto e repugnância o poema oitavo de O Guardador de Rebanhos com a sua blasfémia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto", dizendo ao mesmo tempo: "Na minha pessoa própria, nem uso da blasfémia nem sou antiespiritualista." O seu Menino Jesus representa a procura terna e eterna da paz e da reconciliação, na simplicidade daquele Menino eternamente criança e humano.
Fernando Pessoa "ele mesmo" - ele era muitos, como cada um de nós é muitos; se assim não fosse, como poderíamos entender-nos uns aos outros e a nós próprios? - também escreveu: "Grande é a poesia, a bondade e as danças.../Mas o melhor do mundo são as crianças,/Flores, música, o luar e o sol, que peca/Só quando em vez de criar, seca./O mais que isto/É Jesus Cristo,/Que não sabia nada de finanças/Nem consta que tivesse biblioteca..." E assim chega mesmo a caminhar de mãos dadas com Deus: "Por isso, a cada passo/Que meu ser triste e lasso/Sente sair do bem/Que a alma, se é própria, tem,/Minha mão de criança/Sem medo nem esperança/Para aquele que sou/Dou na de Deus e vou."

3 - Fica aqui o meu mais vivo desejo de Boas Festas para todos, lembrando que o essencial do Natal é Jesus, como disse o Papa Francisco no passado dia 17, quando fez 81 anos: "Se retirarmos Jesus, o que é o Natal? Uma festa vazia."

Anselmo Borges no Diário de Notícias

Georgino Rocha — De Maria, nasce Jesus, o Filho de Deus


Convite aceite

Deus bate à porta de um par de noivos, surpreende-os nos seus sonhos familiares e faz-lhes uma proposta aliciante, embora estranha e perturbadora. Quer dar início à nova fase do projecto que tem em curso desde a criação do mundo: repor a dignidade original do ser humano que, entretanto, tinha sido ferida pelo pecado, e abrir-lhe os horizontes de novidade insuspeitos.
Os noivos habitam em Nazaré, são gente humilde e honrada, vivem os esponsais e aguardam, em esperança confiante, a fase que se segue: habitar juntos. Ela é Maria e ele, José. Cada um, a seu modo, tem o coração posto no futuro que se avizinha. Ambos, sem dúvida, partilham a expectativa messiânica, como bons judeus, e aguardam a sua realização. Ambos são surpreendidos pelo convite do enviado de Deus que pretende a sua colaboração generosa e pede a aceitação correspondente. Maria vai ser a Mãe do Filho de Deus, o Emanuel, a quem será dado o nome de Jesus. José terá a missão de velar pela família e garantir o seu sustento, ser responsável legal, inserir na história que remonta a David a nova situação criada.
Lucas e Mateus, autores dos relatos destes episódios como eram vividos pelas comunidades a que dirigiam os seus escritos, mostram a reacção de perturbação e medo dos convidados. Em tons diferentes e propósitos diversos. Nem era para menos! Imagine cada um o sobressalto que teria se a “coisa” fosse consigo. O enviado de Deus dá explicações que reforçam a grandeza da missão que lhes vai ser confiada e o desejo intenso de que aceitem. O que vem a acontecer, felizmente. E deixa a claro o respeito pela liberdade humana, iluminada pela verdade descoberta e assumida.
O domingo, que celebramos hoje, traz-nos a figura de Maria, ficando a de José para outra vez. Vamos seguir os passos do texto proclamado. Está elaborado, em estilo claro e atraente, para ser um ensinamento sapiencial à maneira de memória agradecida pelo que aconteceu e não tanto para fazer um relato histórico, como agora se entende.
É encantador o modo como o Anjo se aproxima de Maria: “Tendo entrado onde ela estava”, diz o narrador. Que suavidade e delicadeza! Nada que se compare a visitas ou aparições temerosas como a alguns profetas ou mesmo a Saulo de Tarso. Parece que pede licença para lhe falar ou que quer identificar o espaço em que habita: uma casa de família, onde decorre a vida normal. Nada de esplendoroso como o Templo de Jerusalém onde acontece o anúncio a Zacarias de que ia ser pai de João. A escolha do Anjo é significativa e indicia o valor do quotidiano, da ocupação diária, do tempo, do corpo, da relação entre as pessoas, da interioridade pessoal e da consciência iluminada pela razão inteligente e pela fé esclarecida. E deixa-nos o convite a valorizar o nosso dia-a-dia, as tarefas chamadas rotinas, onde o amor discreto quer brilhar.
“Alegra-te, cheia de graça”, assim começa a saudação do anjo visitador. Dá-lhe um novo nome. Ela é Maria por registo familiar; agora é a cheia de graça por indicação divina; no fim do diálogo, vai ser a serva do Senhor por decisão pessoal. É sempre a mesma jovem, filha de Ana e de Joaquim, seus humildes pais.
“O Senhor está contigo”. Por isso, não temas. Serena. Escuta o que Deus sonha para a humanidade por meio de ti: O Filho do Altíssimo, o herdeiro das promessas a David, aquele que vai iniciar um reinado sem fim, esse nascerá de ti por acção do Espírito Santo. E Maria evolui interiormente: Da perturbação e perplexidade face ao anúncio, passa à pergunta de esclarecimento, ao assentimento e abandono confiante expresso na entrega incondicional: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”.
Gabriel, o anjo visitador, faz memória de alguns feitos de Deus para libertar o coração de Maria da perturbação sentida. E ela escuta e atende. Esta atitude diz-nos que a fé em nós nasce da palavra, que há necessidade de conservar no coração o que vem da parte de Deus, que só a coerência de vida é resposta adequada ao seu acolhimento incondicional. Como seria bom cultivarmos o amor à Palavra de Deus que abre novos espaços à nossa vida!
Após receber o consentimento de Maria, a serva do Senhor, o anjo retirou-se. Como chegou, assim partiu. Sem mais recomendações, nem alaridos. Com plena confiança, deixa o precioso legado a germinar nas entranhas da que vai ser Mãe. Com plena liberdade. E responsabilidade, também. Que respeito e discrição! Aqui e agora, o silêncio de Deus mostra toda a sua fecundidade. E a sua transcendência toma o rosto sereno de uma criança prestes a nascer.

Georgino Rocha

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Já estamos no Inverno


Já estamos no Inverno. Oxalá ele venha com chuva, mas não com frio. No inverno da vida, precisamos muito de temperaturas mais amenas, se possível. Contudo, a chuva própria desta estação faz muito jeito a toda a natureza, incluindo as pessoas. A água é já um bem escasso em muitos recantos do mundo, pelo que será bom lembrar que importa preservá-la, poupando-a e evitando a poluição. E que nos lembremos também de quem vive em zonas áridas, sem água à vista. 
Para elucidar os meus habituais leitores, sirvo-me hoje de um texto que transcrevo do Observatório Astronómico de Lisboa. Leia, por favor: 

«Este ano o Solstício de Inverno ocorre no dia 21 de Dezembro às 16h 28min. Este instante marca o início do Inverno no Hemisfério Norte, estação mais fria do ano. Neste dia, o sol no plano da eclíptica passará pela declinação mínima (latitude ao equador) de -23° 26′ 5″, atingindo o máximo de fluxo de energia solar (J/m2) no hemisfério sul do planeta.
Produz também um dos dias mais curtos do ano no hemisfério norte: apenas 9h e 27min 4s em Lisboa. O dia 21 é igualmente curto até à casa dos segundos. A duração do dia será de: 9h e 8minem Bragança; 9h e 12min no Porto; 9h e 18min em Coimbra; 9h e 21min em Castelo Branco; 9h e 29min em Évora; 9h e 33min em Ponta Delgada; 9h e 37min em Faro; 10h e 0min no Funchal;
Esta estação prolonga-se por 88,99 dias até ao próximo Equinócio que ocorre no dia 20 de Março de 2018 às 16h 15min.
Solstícios: pontos da eclíptica em que o Sol atinge as posições máxima e mínima de afastamento (altura) em relação ao equador, isto é, pontos em que a declinação do Sol atinge extremos: máxima no solstício de Verão e mínima no solstício de Inverno.
A palavra de origem latina (Solstitium) está associada à ideia de que o Sol devia estar estacionário, no movimento de afastamento ao equador, ao atingir a sua mais alta ou mais baixa posição no céu.»

O nosso Menino Jesus já está connosco


Razões diversas provocaram um atraso na chegada do Menino Jesus. Obras em casa têm os seus custos. Porém, tudo terminou a seu tempo, porque, afinal, é sempre tempo de nos revermos no nosso Menino Jesus que está na família há décadas. Em corpo e em espírito.
Um dia destes tentámos acertar as contas, mas as provas reais nunca bateram certo. Certo é que o nosso Menino Jesus, desde há muito, se apresenta vestido a rigor, não vá dar-se o caso de se constipar com o frio e a humidade próprios da quadra.
De facto, há bastantes anos a Lita pôs-se a meditar e chegou à conclusão de que Nossa Senhora, se visse como apresentam o seu e nosso Menino Jesus quase nuzinho,  nas igrejas e em espaços comerciais, mas ainda em casa de gente cristã, ficaria zangada, ela que tantos cuidados teve com o seu querido filho desde que o ofereceu a todos os homens de boa vontade. Depois dessa meditação, a Lita não hesitou e vestiu o nosso Jesus com roupinhas quentinhas e à sua medida, feitas com muita ternura. E assim ficou até hoje.

Bom Natal para todos.